terça-feira, 30 de dezembro de 2014

2014 - Um gatilho musical


2014 foi um ano que começou seriamente épico, tirando o me fôlego; mas terminou tranquilo como uma brisa. Isso é lindo.

Das ruelas da Basilea em meio as aulas com Tobie Miller às ruas da Lapa, passando pela serra de Petrópolis, pelo terreirão do samba - até por Curitiba, no maravilhoso encontro nacional de vielas de roda - e terminando em Niterói, no último show do Café Irlanda para 2014, eu e Lyanna tivemos um ano cheio. Não necessariamente cheio de desafios, mas de crescimento e difusão de nosso trabalho. Esse post é uma pequena retrospectiva dos momentos que marcaram meu ano ~vielístico~. E deixo aqui um forte abraço a cada um que fez parte dele.


Comecei 2014 como o aluno que sempre vou ser, amando descobrir tudo que posso sobre a viela de roda, tentando no meu próprio tempo avançar nesse instrumento tão instigante e intrigante. Essa paixão que só aumenta só foi mais alimentada pela Tobie e suas aulas sensacionais, pelos museus com aqueles tesouros. E pela visita inesperada ao fantástico atelier do Sebastian Hilsmann, em Kirchzarten, na Alemanha. Não me parecia que 2014 fosse reservar muito mais que isso para minha alma vieleira, mas... Ledo engano.

Os shows para o Café Irlanda foram vários. Casamentos, pubs, festas... Sempre com a viela perto de mim, sempre aprendendo a afinar cada vez mais rápido antes de uma música. Eu diria que esse foi o ano de aprender a lidar com afinação ao vivo, um verdadeiro desafio para alguém que tem um instrumento tão tradicional feito o meu. Aprendi a me portar melhor num palco com minha viela; e o melhor: aprendi a cantar. Poder tocar viela e cantar é uma das coisas mais lindas que pude fazer, é um sonho distante que chegou. Saber me portar num palco nessas condições é o tipo de coisa que a gente aprende uma vez só na vida, por isso sou grato.

Bom, mais alguns meses à frente e a bomba cai: Matthias Loibner passaria por Brasília e Curitiba esbanjando simpatia e musicalidade com sua viela de roda. Preso pelo trabalho no Rio, só pude curtir e ficar feliz pelos meus companheiros de roda e seus dias inesquecíveis ao lado desse verdadeiro mestre.

Tamanho foi o gás que essa visita inesperada deu em nossa inspiração que pouquíssimo tempo depois nosso filho brasileiro nasceu: o I Encontro Nacional de Vielas de Roda rolou em Curitiba e a maior parte de nós compareceu e fez aquele fim de semana de novembro entrar para a história. Conheci pessoas maravilhosas que acabaram de realizar o sonho de ter uma viela, de tocar com outras pessoas. Pessoas que acabaram de começar novos projetos, e pessoas que apenas queriam ver os instrumentos de perto. Esse foi provavelmente o highlight do nosso ano; e eu não preciso entrar em detalhes a respeito do que sinto em relação àquele fim de semana.

Rabequeiros de Roda

Mondial de la Bière - Terreirão do Samba - RJ
Tudo passou muito rápido, na verdade. Por isso essa semana que passou soou como outra qualquer - não parece o final do ano. E fazer esse último show com a minha banda no novo Bar do Turco, em Itaipu, foi engraçado. Digo isso porque foi um show totalmente diferente do que estamos acostumados. Um público um pouco mais velho, sentadinho, todos compenetrados, como se estivessem num concerto. Geralmente não gosto disso, mas tivemos uma atenção diferente; e a viela, como sempre, 100% de atenção, a ponto de eu ficar tão nervoso quanto a primeira vez em que a toquei ao vivo. Shows com a viela são geralmente complicados; basta eu segura-la para que um certo silêncio corra pela sala e todos me ouçam com curiosidade. Eu fico TENSO. Fora que leva-la comigo é sempre um perrengue, ainda mais nessa época do ano. Como o instrumento é uma grande caixa abaulada de madeira e cordas, a influência da temperatura pode ser devastadora e me deixar com a cara no chão na hora começar a tocar, perdendo alguns minutos afinando. No fim, os sorrisos. E todas as perguntas que eu já sei responder até em libras... E tudo vale a pena. =)

Meu primeiro aluno.
Após tanta emoção, termino esse ano tendo uma vivência muito importante para minha trajetória e meus planos: seguindo a ideia da querida amiga Raine Holtz, estou contemplando a ideia de começar a dar aulas de viela de roda em 2015. Nada muito elaborado, apenas o básico, com o intuito de difundir o interesse pelo instrumento e claro, traçar uma carreira mais concreta com o mesmo. Tirar a viela de roda dessa névoa de mistério, tira-la um pouco desse pedestal inalcançável. Já tive minhas primeiras experiências agora pelo fim do ano, e confesso que gostei muito. Até porque ensinando a gente aprende; e aprendendo a gente ensina melhor.

A galera se divertindo,
O último fim de semana do ano, que chegou de mansinho, me levou a um delicioso pique-nique tolkiano no aterro do Flamengo, onde eu e Lyanna pudemos entreter um pouco os meus amigos leitores elfos e hobbits. A viela foi um sucesso, do jeito que merece ser; e meu ano, por sua vez, se fecha com chave de ouro e a promessa de muitas revoluções em 2015. Que girem as rodas e venham os novos vielistas, que a semente do nosso instrumento finalmente floresça nesse canto do mundo, sempre tão fértil musicalmente.

Obrigado a todos que fizeram parte do meu 2014. Vamos quebrar tudo em 2015, que essa roda é infinita. ;-)


Vielisticamente,

Primeiro material em português totalmente
voltado para viela de roda. Saiu na semana do nosso encontro.


quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Game of Thrones na Viela de Roda



Mateus e Francisco Sokolowski e sua versão de Game of Thrones postada essa semana no Facebook.
Já é o segundo cover vielístico dessa música aqui em nossas terras, então estamos bem! =D Para quem não lembra, minha banda também toca esse cover, sempre uma sensação em shows.




Parabéns aos rapazes pelo arranjo, tão bonito.





Vielisticamente,





sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Doreen Muskett


E essa semana faleceu uma das pessoas que mais contribuíram para a existência e popularidade da viela de roda na atualidade.

Impulsionada pela falta de um método mais atual para a viela de roda, Doreen Muskett dedicou sua parte de sua vida à criação do Hurdy-Gurdy Method, livro que teve sua primeira edição em 1979 - a primeira de quatro edições até o presente momento.

Esse livro foi a primeira indicação literária que me foi dada a respeito da viela; e até hoje eu o utilizo, aqui no Brasil. 

Foto postada por Sheila Sheppard, filha de Doreen

Doreen, que lutou contra o mal de Parkinson por 44 anos, foi uma figura de extrema importância para basicamente toda a nova geração de vielistas; e até o virtuoso Nigel Eaton comentou que ela foi a primeira pessoa a colocar uma viela em suas mãos.

Seu marido, Michael Muskett, nos comunicou sobre sua morte nesta terça-feira, dia 16 de dezembro, muito emocionado; nos dizendo que Doreen partiu pouco depois de ele ter tocado uma dança francesa em sua viela, ao seu lado.





Que a obra dessa mulher fantástica seja eterna; e que muitos vielistas ainda possam brotar das páginas de seu livro.


Vielisticamente,


segunda-feira, 24 de novembro de 2014

I Encontro Nacional de Vielas de Roda


Estávamos eu e Raine na grama, falando besteiras e rindo da vida, quando vimos um pontinho laranja vindo lá longe, do outro lado do parque. Eram Nayane e Adriano, finalmente. O frio na barriga voltou com o pé na porta e eu sabia que ali sim, oficialmente, começava o dia que coroaria um dos fins de semanas mais épicos do ano. Um dia que há alguns anos eu não pensava que viveria para ver. Éramos apenas três pessoas ali, mas estávamos compartilhando pela primeira vez o peso de uma tradição antiga e fascinante que não nunca foi parte de nosso país, tradição esta que estamos trazendo aos poucos, divulgando um instrumento que nos sequestra de forma deliciosamente violenta.

Dia desses, após um show do Café Irlanda, eu conversava com um rapaz sobre a viela de roda, respondendo as perguntas básicas de sempre (como, quando, onde etc) quando fui pego de surpresa por seu ar decepcionado, afirmando que aqui no Brasil não seria possível ter sucesso com esse instrumento porque não temos cultura pra isso, não. Antes de ele terminar sua frase eu já sabia que eu não poderia discordar mais dele. Ora, a viela encontra terreno fértil no Brasil, sim. Está crescendo aqui de forma assustadoramente rápida, sim. E eu presenciei parte dessa história na semana passada, num evento que vai deixar saudades para sempre.

O primeiro encontro nacional de vielas de roda ocorreu dia 15 de Novembro em Curitiba, carinhosamente apelidada por nós como a capital da viela de roda no Brasil, já que a cidade possui quatro dos vielistas brasileiros. Foi um dia histórico e muito, mas muito importante não só para mim, mas para todos que lá estavam. Aliás, foi um fim de semana realmente épico; desses para os quais a viela sempre me arrasta. Eu adorei conhecer um pouco de Curitiba e conhecer meus amigos vielistas, com quem tanto falei apenas virtualmente. Participaram do encontro: Nayane Texeira, Mateus Solowski, Luis Fitzpatrick, Fernando Kinach, Raine Holtz e eu. Também contamos com Carlos Simas e sua nyckelharpa, que foi uma grande sensação no evento. Que instrumento lindo!


Temos muito em comum, apesar das diferentes histórias e trajetos. E apesar de sermos todos vielistas, temos vielas completamente diferentes umas das outras, o que só reforçou a ideia de um instrumento estranho aos olhos de todo mundo que nos vê tocar. Aliás, por tocarmos tal instrumento, acabamos pegando um pouco de sua aura peculiar, e as pessoas acabam nos olhando da mesma forma curiosa, se perguntando como chegamos ali. Em alguns momentos esse encontro parecia uma reunião de feiticeiros, e as pessoas ao redor apenas olhavam hipnotizadas. Parte dessa curiosidade provavelmente vem dessa diversidade existente entre apenas seis vielas. Cada uma em um formato e configuração diferente, construídas por diferentes luthiers de diferentes países, refletindo a estranha e fascinante trajetória desse instrumento que beirou a extinção diversas vezes e sempre deu um jeito de sobreviver, mesmo sendo diminuído e rejeitado em vários níveis. É impressionante ver que a viela parece sempre oscilar entre algo pobre e tronxo e algo raro, caro e nobre, sua situação hoje no mundo inteiro.

O fim de semana já havia começado de forma muito especial, comigo sendo recebido pela Raine, com quem já havia trocado inúmeras mensagens. Conversamos horrores, trocamos figurinhas, rimos e claro, tiramos fotos. Pude ver de perto parte do universo imenso do Through Waves, e foi como conhecer uma grande artista que admiramos há muito tempo - só que com direito a busking na manhã seguinte com ela, arrecadando R$10,00 em uma feira. Fiquei impressionado com a técnica da Raine, que está se tornando expert em improvisos - com direito ao uso do trompette. Que experiência gostosa. Inesquecível. E o Bourrée à Aurore Sand ganhou um novo significado. 

Enfim, como eu dizia: o fim de semana já havia começado maravilhosamente bem, mas terminou superando minhas expectativas. Eu ainda não sei se amo ou odeio esse gostinho agridoce que fica quando algo termina porque é preciso, mas deixa uma saudadezinha forte. O que me anima é pensar que ano que vem esse evento vai ser maior ainda; e contaremos com mais colegas vielistas e um público ainda maior. Esse foi um fim de semana que me marcou para sempre; e eu espero que ano que vem todos possam comparecer e compartilhar com a gente suas histórias, questões e claro, suas músicas. 

Obrigado a todos que foram ao encontro, obrigado também a quem não foi mas divulgou o evento, chamou pessoas e nos apoiou de alguma forma. Obrigado aos grandes nomes lá de fora que nos apoiaram dando going no evento ou mandando lembranças: Germán Díaz, Ariel Niñas, Nigel Eaton, Oscar Fernandez. À Raine, à Nay, à Letícia e aos meninos Mateus, Fernando e Luís: um abraço apertado e meu desejo de revê-los em breve, com mais música e mais vielas por perto. Amei tocar com vocês! Meus parabéns a cada um de vocês, todos estão tocando muito bem, fazendo a variedade de estilos e propostas corresponder às diferentes cores e formas de nossos instrumentos. Fiquei verdadeiramente maravilhado. Obrigado por realizarem esse sonho.

Agora ninguém mais nos segura.  ;-)

Vielisticamente, 

PS.: Para assistirem o vídeo gentilmente editado pela Raine, basta clicar aqui.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Do Brasil... Em Gales.


Bem-vindo, Gabriel Inague!

Mais um para o time, galera. E mais uma vez com uma viela prima da minha, também construída por Neil Brook.

Gabriel se encontra em Gales cursando parte de sua graduação; e apaixonado por música, foi sugado para nosso pequeno universo.

Sua viela é literalmente peculiar (como se só o fato de ser uma viela não bastasse, ainda mais com esse desenho lindo), por ter seu corpo feito de cabaça africana, o que enriquece o som do instrumento de forma incrível, principalmente nos graves. O modelo foi inventado pelo Neil, e você pode conferir seu som aqui. O nome "hurdy-gourdy" é uma piada com o termo inglês para a cabaça. =)

Parabéns ao novo vielista brasileiro; e vamos seguindo.
Semana que vem promete, hein. Aguardem.

Vielisticamente,


quarta-feira, 5 de novembro de 2014

No Brasil: Raine Holtz, a primeira professora de viela do país



É realmente impressionante a velocidade com a qual as coisas tem se desenrolado para nós, vielistas, aqui no Brasil. Além da visita de pessoas ilustres como Matthias Loibner, e do crescente número de novos vielistas, o Brasil conta agora com sua primeira - eu disse PRIMEIRA - professora de viela de roda. Foi dado mais um passo importantíssimo na cena "vielística" brasileira.

Não bastasse ser uma das poucas pessoas a se aventurarem no instrumento - com o bônus de utiliza-lo muito sabiamente em seu projeto, o Through Waves -, Raine agora se lança como professora do nosso maravilhoso instrumento.

Essa preciosidade se encontra, obviamente, em Curitiba, aparentemente a capital da viela de roda no Brasil. Portanto, minha dica é: se você mora em Curitiba ou redondezas, AGARRE essa oportunidade. Se você não mora em Curitiba, vale a pena se organizar para passar por lá uma vez por mês e fazer uma aula?

A ideia é genial porque, não tendo um instrumento, o aluno pode sentir na pele se a viela de roda o agrada; see vale a pena investir em uma ou não etc. Deixo aqui meus parabéns à nossa talentosíssima Raine. Que sua estrada seja cada vez mais iluminada.


Vielisticamente,

terça-feira, 4 de novembro de 2014

No Brasil: Clanna Iúr e seu primeiro show.


Nossa primeira apresentação pra valer, a gente nunca esquece. Eu pelo menos nunca esqueci a minha; e a sensação gostosa de subir num palco pela primeira vez é bem menos assustadora do que parece.

Este post é justamente sobre a primeira apresentação do Clanna Iúr, projeto que vem do estado de São Paulo trazendo Nayane Teixeira como vielista de roda. O projeto trabalha tunes tradicionais de regiões de origem celta como a Bretanha, a Irlanda etc; e teve sua estreia no evento Orgulho Pagão 2014, que ocorreu dia 25 de outubro em São Paulo. A vielista em questão, Nayane Teixeira, é alguém que eu (ainda) não conheço, mas já admiro muito. Tocando hoje uma viela construída pelo Neil Brook (mesmo luthier da minha =)), ela passou um bom tempinho esperando seu instrumento chegar e hoje está aí, começando a tocar seu projeto ao lado de seu companheiro, que toca bandolim.

Para assistir a apresentação, basta clicar aqui.


Tudo de bom a vocês, Clanna Iúr. Nos vemos em breve. =)

Vielisticamente,

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Três.


Em termos de música, antes de mais nada - e apesar da manivela tatuada em meu antebraço - eu sou um violinista; e tudo o que consegui em minha vida artística, eu alcancei graças ao violino. Hoje um instrumento clássico por excelência, o Rei da orquestra sempre causa uma impressão carregada de imagens europeias muito comuns e eruditas; o violino vem, naturalmente, carregado de pré-conceitos quase tão antigos quanto a própria música. Escrever este post, agora, soa quase como uma blasfêmia; e eu me sinto desafiando a ira de um Rei, mesmo. 

Mas é aquilo, né. Depois de tantos anos, eu ainda tenho essa curiosidadezinha aparentemente barata por tudo aquilo que é deixado de lado pela maioria. Aquilo que é lançado aos cantos escuros e obscuros de seja lá o que for sempre me atraiu quase involuntariamente. Já era assim quando percebi que não era como os outros meninos da minha turma na escola; e foi assim quando optei por violino ao não conseguir vaga na aula de violão. E foi assim por anos, enquanto eu ignorava os concertos barrocos para aprender jigs e reels de ouvido, entrando em contato com o lado mais povão do meu instrumento. É engraçado pensar que o violino um dia foi um instrumento absolutamente popular, dedicado à música profana, do povo. Eu poderia dizer que essa dualidade me encanta, mas eu estaria mentindo. Eu simplesmente prefiro esse lado mais relaxado da música. E o mesmo quase se repetiu na primeira vez em que vi uma viela de roda. Mas reforço: quase. - Com a viela, tudo foi mais forte.

E digo isso porque a viela de roda é aquela moça estranha da sua adolescência, que cresceu e se tornou uma das mulheres mais lindas que você já viu. Uma mulher capaz de fazer todos caírem aos seus pés sem terem a menor ideia de seu passado torto e repleto de rejeições. Ela é aquele homem que você considera estranho sem saber porquê; e ainda sem achar razões, sente uma atração irresistível pelo mesmo. Não tendo tido o mesmo sucesso que seu primo distante, a viela sempre acabou sendo renegada, ficando em meio ao povo e ao campo.

Ironia. Eu toco um dos instrumentos cuja reputação nobre está entre as mais inabaláveis na história da música ocidental; e tenho mil imagens associadas a ele que são transferidas a mim involuntariamente: nobreza, delicadeza, sofisticação etc. And yet, aqui estou eu, tocando o que toco. Acho que por isso sempre me senti como se estivesse vestido de uma roupa um tanto desconfortável, afinal eu o uso para tocar músicas que pertencem a um povo marcado por tristezas e crises. Eu toco música folk, dessas ditas populares, que fazem você bater seu pé direito sem perceber. Eu nunca quis usar fraque e ser spalla. E eu toco uma música que fala de danças baseadas na beleza da simplicidade; e airs que traduzem não apenas a desolação da morte, mas de amores perdidos e pessoas roubadas pelas fadas. É sempre estranho desconstruir toda realeza do violino para quem quer que seja. Talvez por isso, com uma manivela em mãos, as coisas soem mais naturais para mim. 

Na viela de roda, essa subversão não ocorre. Ela vem sim, diretamente do povo. E nunca emplacou pra valer como um instrumento respeitável - apesar de seu curto período de ouro na música barroca do século XVIII. E depois de sair da igreja, passar por vilarejos, viver um tempo em Versailles e ser renegada ao campo após a Revolução, com o povo ela permaneceu; e com seus velhos vielistas ela quase desapareceu, como um fiel cachorro-escudeiro seguindo seu dono miserável pelas ruas.

Eu hoje tenho mais orgulho que nunca, por ser um desses vielistas. E tenho sido um por três anos, completos precisamente hoje.

Por mais que a viela conquiste novos territórios  - a prova disso é o número de amigos vielistas que estão, aliás, a ponto de realizar o primeiro encontro de vielistas do meu país - e por mais que a viela, mesmo tendo sobrevivido a mais de mil anosa de estigmas e esquecimento, seja agora considerada um instrumento digno de escolha, eu sei que posso afirmar com certa propriedade que somos especiais como nosso instrumento. Não é qualquer um que se atreve a girar essa manivela.

Eu nunca me envergonhei de ser singular em nível nenhum. E apesar de não ser um fato e eu detestar generalizações; ainda me pego pensando que a atração que a viela exerce sobre pessoas incomuns é quase inegável. A impressão que tenho é que todos nós temos um "mas e se..." tatuado em nossas testas; e isso é lindo. Nossas escolhas nos traduzem; e a viela é a minha escolha que mais fala sobre mim.

Há três anos eu estava segurando minha Lyanna pela primeira vez no colo, não tendo a menor noção do porquê de eu ter lutado tanto por ela; sem entender que ela representava única e simplesmente uma coisa: minha vida.

No fim do dia a viela de roda para mim é o símbolo de um caminho único, feito por escolhas incomuns. É um prazer estar mais um ano trilhando essa jornada épica que é estudar esse instrumento. Obrigado a todos que vez ou outra passam por aqui por qualquer razão. Esse espaço, apesar de extremamente pessoal, é para todos nós que fizemos ou estamos prestes a fazer essa escolha apaixonante que é a viela de roda.

Vielisticamente,

;-)



segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Ultimamente no Brasil II: Matthias Loibner


É muito estranho pensar que os poucos mestres da viela de roda que pude conhecer eu só conheci porque criei coragem (meses juntando $$$) e me enfiei na Europa. Encontra-los sempre foi uma aventura deliciosa, apesar da distância entre meu país e o mundo vielístico ser quase desanimadora. Digo que é estranho porque esse mês o Brasil teve o inacreditável privilégio de receber diretamente da Áustria Matthias Loibner e sua viela de roda - algo que eu jamais pensei que veria ocorrer - e eu , tão perto e tão longe, não pude vê-lo. 

Ganhador de prêmios e um dos grandes ícones da viela de roda no mundo, Matthias sempre teve uma relação forte tanto com a música folk como com a música experimental (daí o uso de seu laptop em seus concertos). Eu pessoalmente já conhecia o seu trabalho porque quado pesquisamos sobre o instrumento sempre acabamos passando por alguns vídeos em que ele apenas destrói a viela com sua mão direita, possuidora de uma técnica impecável e chocante.

Em janeiro, quando estive na Basilea, tive a oportunidade de ouvir falar bastante dele. Tobie Miller já estudou com Matthias e eu imaginava como deve ser fantástico ter a oportunidade de estudar com alguém tão talentoso - ele é considerado o Jimmy Hendrix da viela de roda, ok?


Pois bem, Matthias esteve por aqui e passou por Curitiba e Brasília para tocar no projeto Viva Mais Cultura, da Caixa Cultural. Como sua passagem não incluiu Rio ou São Paulo e eu só soube disse dois antes das datas, infelizmente eu não pude nem dar um oi. (#recalque) Contudo, entretanto, todavia, meus caros amigos da comunidade vielística não só o viram tocar, como o levaram para passeios e, claro, tiveram algumas horas de aula VIP.


Augusto e Matthias
Começemos por Brasília. Dia 11 de setembro foi a vez do Augusto Ornellas, vielista de Brasília, aproveitar Matthias e sua viela. Apesar de essa ser a segunda data da curta passagem de Matthias, vale começar por ela. A palestra de Matthias em Brasília pode ser vista aqui, aqui, aqui e aqui.

Fico extremamente contente em saber que além das palestras meus amigos puderam conhece-lo e trocar ideias. É fundamental que esse tipo de interação role, porque UMA diquinha que seja que alguém desse porte nos dê é o suficiente para poupar-nos de meses e meses de desespero por não sabermos mexer ou solucionar um problema sonoro na viela. Estamos literalmente exilados do resto do mundo, então toda informação é bem-vinda.

A respeito do dia 9 de setembro, passo a palavra à Letícia Goularte, que nomeou Curitiba a capital nacional da viela de roda. Nada mais justo, galera. Tá todo mundo lá. ahah 

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"Matthias Loibner em Curitiba – por: Letícia Grockotzki Goularte

No dia 09 de Setembro de 2014 o austríaco Matthias Loibner se apresentou no teatro da Caixa Cultural em Curitiba-PR e tive a oportunidade de conhecer seu trabalho e conhecer também sua simpatia. Foi um show mais que agradável no qual Matthias demonstrou sua percepção das coisas através da música, mais especificamente, sua percepção das pequenas coisas e da graça da vida, coisa que ele deixou claro em suas atitudes. E claro, sua envolvente viela de roda, a qual ele toca (e nos toca) de maneira incrível.

Em suas composições Matthias explora o instrumento indo além de como estamos acostumados a ver e a ouvir. Não se limitando a girar a manivela e apertar as teclas, ele usa glissandos, pinça as cordas, utiliza harmônicos e até pequenos gestos percussivos.

Após o show tivemos a oportunidade de ter um contato mais próximo com ele e ali começamos a descobrir o ser carismático que é. Não fui ao bar na terça a noite (vídeo aqui), mas no dia seguinte me encontrei com ele a tarde. Matthias não fez questão de conhecer muito os “postais” de Curitiba, se contentou em conhecer o Bosque do Papa, perto de onde estava hospedado, o Museu Oscar Niemeyer e, após o almoço, sentar-se na grama da praça entre o museu e o bosque para conversar sobre sua filosofia de vida, entrar em ‘ressonância’ com o mundo e as pessoas, como ele mesmo diz.

“Eu anotei as coisas que gosto em um papel, a lista foi ficando tão grande e hoje eu posso dizer que sou mais feliz.” (Mais ou menos as palavras dele).

Um pouco antes da palestra que aconteceria na Escola de Música e Belas Artes do Paraná (UNESPAR), achei uma sala do prédio da universidade para que ele pudesse estar à vontade com sua viela. Queria tirar algumas dúvidas, mas mais que isso, ganhei uma aula de viela de roda. A minha viela ainda não chegou, mas não foi empecilho, pois ele simplesmente retirou sua viela da capa e a colocou em meu colo e assim conheci de perto quanto às técnicas que ele usa e tive minha primeira experiência no instrumento. Matthias também é um ótimo professor, daqueles que literalmente pede para que você feche os olhos e sinta a música.

Letícia, Mateus e Matthias
Quando ele estava terminando de me ensinar as primeiras noções, chegaram o Mateus Sokolowski e o Fernando Kinach (vielistas de Curitiba, da banda Mandala Celta) que eu havia convidado para que também pudessem ter esse tempo com o Matthias. O resultado foi uma sessão de reparos na viela dos dois (Matthias já fez curso de lutheria) que não deixou de ser também uma aula, com dicas de como ele cuida de sua viela também.

Por fim, fomos à palestra, a qual também foi muito proveitosa e está gravada na íntegra em áudio e vídeo (disponível no youtube)

Matthias Loibner é essa pessoa que nos surpreende a cada passo, conhecedor e um professor, não só de música, mas também da vida. Excelente instrumentista da viela-de-roda, excelente músico, mas também humilde e muito amigável. Matthias, meu (e acho que de todos os vielistas e admiradores da viela-de-roda) muito obrigada!"



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O mais incrível disso tudo é que se olharmos para trás já podemos ver que o Brasil já contou com a presença de algumas das pessoas mais relevantes da cena vielística contemporânea (Nigel Eaton, Ariel Ninas, Germán Díaz e agora Matthias Loibner). Sendo que os últimos que por aqui passaram já viram que nossa comunidade está crescendo bem e crescendo rápido. Ponto para nós. E meus parabéns aos músicos que puderam usufruir dessas horas, tenho certeza que vocês crescerão muito e farão nosso querido instrumento ter cada vez mais visibilidade. 

Sites do artista e de seu luthier:




Vielisticamente,


sexta-feira, 19 de setembro de 2014

No Brasil Ultimamente 1


Wow.

Ufa. Eu sumo rapidamente e BOOM, tudo acontece no Brasil. Sim, este é um post amargo. Os últimos meses/semanas trouxeram dias absolutamente festivos para a pequena comunidade vielística brasileira e eu vou tratar de cada um deles.

O ideal era postar essas coisas conforme elas vão surgindo, eu sei. Contudo, entretanto, todavia, em minha defesa: 

1) Eventos como os que vou citar parecem surgir do dia para noite, não por  conta dos artistas maravilhosos que os integram, mas pela divulgação pobre e sem alcance feita em cima desses eventos, coisa que prejudica tanto o artista, que não tem seu trabalho devidamente promovido, como o público (eu), que sabe de tudo em cima da hora e não pode fazer nada. #recalque.

2) Essa vida está uma loucura, dentro e fora do mundo vielístico. Há um iminente encontro  nacional de vielas de roda para acontecer, nossa comunidade tem crescido rapidamente e... Bom, a vida anda corrida, enfim.

Bom, vamos ao que interessa, mesmo que a título de registro:

Estava eu dia desses vivendo a minha vida quando me deparo com um cartaz online de uma apresentação do Pablo Lerner (mestre da rabeca de roda húngara tocando música nordestina). Quase surtei, pois se tem uma pessoa que faz o elo perfeito entre o Brasil e a viela de roda, essa pessoa é o Pablo. Literalmente. Cheguei a entrar em contato com ele para tentar arrumar qualquer tipo de encontro aqui pelo Rio, mas infelizmente suas apresentações ocorreram apenas lá para as bandas de cima. Jamais superarei. Fim.

Fato é que concerto do Pablo integrou a série "Música no pôr do sol", organizado pelo SESC. O concerto em questão ocorreu no Ceará, mas Pablo também passaria por São Paulo, provavelmente também com esse espetáculo. Acho maravilhoso que pessoas tenham tido essa oportunidade fantástica de ouvir o Pablo tocando seu tekeroant com sons nordestinos. Não pude estar lá fisicamente, mas estava de coração e sei que foi fantástico. =)

Sobre o evento:

"Ao som da viela de roda, Pablo Lerner aproxima seu som ao da rabeca, violino popular brasileiro. Apesar da viela de roda [ser inexistente no Brasil] (risos)], as fortes reminiscências medievais das melodias nordestinas e seu modalismo faz com que o instrumento rime com elas. No repertório, estilos como coco, baião, maracatu e bumba meu boi."

Eu culpo meu inferno astral. Mesmo o evento tendo sido há uns meses atrás rs.

Vielisticamente,

Henrique


quinta-feira, 14 de agosto de 2014

No Brasil: Mandala Celta


Num país em que nem dez vielistas existem, uma banda com dois vielistas é de um abuso inacreditável! haha No bom sentido, é claro! Pasmem, uma das últimas novidades relacionadas à viela de roda no Brasil é a banda Mandala Celta, que tem sua estréia hoje mesmo. Com duas vielas de roda! Isso é apenas muito, mas muito maneiro.

A banda traz uma formação bem interessante para sua proposta, contando com Mateus Sokolowski na viela de roda, bandolim e bouzouki, Thomaz Ozatski no violão e na voz, Marcos Carvalho no contrabaixo (!) e na voz, Fernando Kinach Loureiro nas flautas, na viela de roda - ! - e na voz; e Eric Fontanini na bateria e na voz. Eu poderia parar o post aqui porque né, já deu pra sentir a vibe. Mas vamos lá.

Mateus já é conhecido aqui do blog porque foi um dos malucos da primeira leva a conseguir uma viela, quando o blog estava bem em seu início. Eu estava para escrever sobre ele há meses por conta de seu trabalho no Gaiteiros do Lume, mas como esse seu novo trabalho está saindo do forno agora, me pareceu mais sensato fazer este post.

A banda se propõe a fazer leituras originais de canções tradicionais de países de origem celta, traçando paralelos com o folk americano e até mesmo a música árabe. A proposta da Mandala, em suma, é provar que para a música não existem barreiras ou fronteiras. Aliás, nem precisaríamos ir tão longe, os próprios músicos, por serem brasileiros, já provam essa teoria. E esta banda é fruto das viagens que seus integrantes fizeram para diferentes países.

É engraçado isso, mas eu às vezes tenho a sensação de que pessoas, no geral, tendem a aproveitar viagens, sim; mas músicos tendem a aproveita-las mais. Em níveis que nem todo mundo compreende. A Mandala Celta é provavelmente uma prova disso também.

Ainda não pudemos ouvir seu trabalho, mas me parece que vem muita coisa boa por aí. Apesar de sermos uma pequena comunidade no Brasil - e aqui me refiro não à comunidade de vielistas, mas à comunidade da música tradicional/folk de países de origem celta - nós geralmente temos propostas muito parecidas, e até mesmo limitadas, então ver uma banda com uma formação tão original é bem maneiro, porque mostra que estamos evoluindo e começando a pensar fora de nossa caixinha. 

Bom, fato é que tudo isso é muito bom e muito lindo, mas não posso negar: o que mais quero ver é a interação entre as duas vielas. Esse tipo de formação assim, numa banda, é raro mesmo mundo à fora, salvo os duetos em encontros e masterclasses sobre música tradicional. É quase a mesma coisa com a gaita de fole: justamente por ser um instrumento de "personalidade" muito forte, sempre vemos uma por grupo, basicamente. É, estou bem curioso.

Deixo aqui meus parabéns aos músicos por trabalharem num projeto tão interessante. Toda sorte à Mandala Celta; e que a banda atinja todo sucesso que merece e seu trabalho alcance o maior número de pessoas possíveis.

Viela neles! =P

Mandala Celta faz seu show de estreia hoje no Teatro Universitário de Curitiba, às 20:00.


terça-feira, 12 de agosto de 2014

No Brasil: Meadfest

E os eventos medievais por aqui não param.

Ocorreu nesse último fim de semana o IV Meadfest em Curitiba, trazendo muitas fantasias, pratos deliciosos e claro, música boa agindo como máquina do tempo.

Não preciso muito dizer que apesar de alguns outros grupos bem maneiros como o Artilharia Pirata e os Gaiteiros de Curitiba, quem encantou os aldeões por lá foi o Through Waves, sempre catando mais fãs apaixonados pela beleza e pelo talento de Raine Holtz.

Segue um pequeno vídeo do evento para aqueles que, como eu, precisam de alguma maneira de acalmar o recalque de não ter estado lá.


Curitiba e seu estado tem crescido muito em termos de atividade nessa área. Fico impressionado com a capacidade que esse lugar tem de gerar vielistas e eventos vielísticos. =)

Aliás, acaba de surgir por lá mais uma banda que conta com não uma, mas DUAS vielas de roda. Falarei dessa galera no meu próximo post.

Vielisticamente,


segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A viela de roda no imaginário popular



Daí que não fui trabalhar hoje. Febre que não sái de mim. 

Na esperança de me fazer um pouco útil e na delícia que é tratar desse assunto com vocês, resolvi compartilhar um pouco do que tenho lido sobre nosso amado instrumento. Estou lendo um livro que tenho há mais de um ano mas nunca tinha tomado coragem de ler porque está em francês. Pois bem, semestre passado precisamos escolher um livro para fazer uma apresentação oral no curso de francês e voilà, tomei coragem e comecei a enfrentar a fera. E que fera. O livro em questão é "La vielle à roue dans la musique baroque française" e eu estou boquiaberto com o mundo de informações e curiosidades que esse livro traz. Se você toca viela de roda, saiba: vielistas deveriam falar francês só para ler esse livro.

Se trata na verdade de uma tese de doutorado escrita por Paul Fustier, que tenta explicar o porquê de, no curto período que vai 1725 a 1765 a viela de roda sair das ruas e passar a ocupar um lugar de prestígio dentro da corte francesa. Toda a questão do livro gira em torno da viela de roda ter sido um instrumento-símbolo de uma vida campestre idealizada e romatizada pela corte, uma ideia inspirada no mito da Arcádia; e uma tendência que acabou gerando um certo modismo vazio e até mesmo fútil. O livro é brutalmente enorme, porque ele trata de absolutamente TUDO relacionado à viela, o pensamento da época em relação ao instrumento, sua origem, o impacto que essa "era dourada" causa nos tipos de músicos que encontramos, nos luthiers, nas obras etc 

Eu terminei de ler semana passada um capítulo que tenta explicar o porque da associação entre vielas de roda e mendigos (em sua maioria cegos); e eu adoraria falar disso aqui em algum momento, não duvidem. Porém, o capítulo que comecei a ler essa semana me parece mais interessante de forma geral, já que trata da atração/estranheza que o instrumento gerava nas pessoas naquela época, coisa que até hoje é uma realidade. Aliás, realidade da qual eu e você, se estiver lendo isso, somos vítimas. =)

Deixo aqui uma tradução livre da introdução desse capítulo. Foi feita quase às pressas e as figuras que acompanham o texto foram gooogladas por mim, sendo as únicas que encontrei. Gostaria de poder ter acesso a mais imagens, mas realmente são coisas muito específicas. No mais, as danças macabras às quais o texto faz alusão são painéis ou quadros (às vezes afrescos) retratando a morte dançando com uma série de diferentes personagens da sociedade medieval. Aparentemente essas danças tinham como intuito retratar a igualdade de todos perante a morte. Algumas obras que são citadas ficam boiando para nós, já que: 1) minha tradução não é profissional e eu me confundi na sintaxe 2) não existem imagens online de tais obras.

Enfim, eis o texto. Espero que curtam. =)

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Capítulo 6
A infiltração imaginária
6.1 Um instrumento misterioso para quem o vê ou escuta

Aquilo de misterioso que é associado ao personagem do mendigo cego poderia muito bem entrar em ressonância com certas características da viela de roda bem suscetíveis a produzir uma impressão de inquietante estranheza, segundo a expressão de Freud que nós já citamos.

Estranho objeto que frequentemente incorpora a forma de um navio a velas (as vielas em formato de alaúde), que é um instrumento de teclas como o cravo, com a diferença de ser quase um instrumento de arco como o violino - ainda que a madeira do arco não tenha crinas e entre diretamente em contato com as cordas -  e que não se trate de um arco propriamente dito, já que é uma roda. E finalmente, cheio de contradições, ainda é utilizado como instrumento de percussão. Entendemos que aquele que o vê ou escuta é de primeira intrigado e sempre desejará saber <<como funciona>>, como se fosse decifrar algum tipo de mistério inquietante e atraente.

Este instrumento também é estranho porque vem do universo medieval do modalismo e é utilizado, no período barroco, para tocar a música tonal, ainda que os bordões tentassem impossibilitar completa ou parcialmente os tons, gerando alguma dissonância.

A roda é um arco. Esta é, então, circular como a representação de uma volta sem fim. Eliade à enxergará como a figuração de um tempo cíclico, anti-histórico, aquele das civilizações do eterno retorno.
A parte que nos interessa do Jardim das Delícias, de Bosch. 

Musicalmente, a roda fará com que o som não cesse jamais, e que o silêncio seja impossível. De fato, parar a roda seria parar os bordões; produzindo então um vazio brutal, um desaparecimento de um espaço musical, uma ausência e não um silêncio. O vielista não saberia se conter, a menos que ele de fato terminasse <de tocar>. Veremos que a viela pode despertar o atraente e assombroso dentro do seu movimento sem fim; esse movimento circular que outras culturas utilizam devido a seu efeito hipnotizante.

Eu diria que essa é a do Soldan, mas também podeira ser a que se encontra em Sion.
O site realmente não ajudava e eu fiquei sem saber. A ideia, porém, é essa.
A iconografia nos confirma que a viela de roda podia fascinar por seu mistério. Sonhamos com a utilização que Jérôme Bosch faz do instrumento na sua representação de universos fantásticos; sonhamos com as imagens de vielas que encontraremos em certas danças da morte. Citemos as que Georges Kastner traz à tona: a viela é associada a um dos quatro esqueletos-músicos presentes no manuscrito 7310 da Biblioteca Nacional da França. A encontramos também nas mãos de uma velha mulher vestindo uma cornette e que toca no meio dos esqueletos-músicos no icones mortis de Holbein. Ela aparece nas diversas representações do instrumento que podemos ver na Danse du grand Bâle, uma dança macabra de mulheres do fim do século XV que está no manuscrito 995 da Biblioteca Nacional de Paris, folio 24. A morte, também carregando uma viela de roda, acompanha Adão e Eva expulsos do paraíso numa placa de chaminé feita por Philippe Soldan em 1573. 

Painel La Chaise de Dieu
Datando da mesma época, também pensamos na dança macabra do painel La Chaise de Dieu, em que vemos um instrumento em formato de alaúde. Há também aquele reproduzido por Wilkins, do século XV ou XVI - aproximadamente da mesma época. E não podemos esquecer do conhecido quadro de Breughel, Le Triomphe de la mort. Citemos por fim aquela obra, que se encontra em Sion, na Suíça, representando o demônio armado de uma viela, provavelmente no momento em que Adão e Eva são expulsos do paraíso.

Le triomphe de la mort - Breughel (viela no canto inferior esquerdo, na carroça)
Falta consideramos se este aspecto perturbador da viela de roda explicaria o estranho comentário feito pelo Duque de Luynes. A rainha, Marie Leszczynska, não tocaria jamais esse instrumento às sextas-feiras, dia de penitência. Ainda que o praticasse nos outros dias da semana. “Apenas às sextas a rainha não toca a viela, mesmo em sua casa. É uma antiga prática de devoção.”



Referências feitas no texto:

ELIADE, Mircea.  Le sacré et le profane, 1957, tr.fr. Paris, Gallimard, 1965.
Kastner, Georges. Les danses des morts, Paris, Brandus, 1852.
Wilkins, Nigel. La musique du diable, Sprinmont en Belgique, Mardaga éditeur, 1999.

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Por favor, saibam que essa tradução foi feita de forma completamente despretensiosa, apenas para vocês terem uma ideia da riqueza de informações que esse livro nos traz. É interessante ver que mesmo lá atrás a viela de roda já era um instrumento estranho e apaixonante. Aliás, também podemos dizer que era um instrumento polêmico, já que dividia opiniões.

Logo volto com mais novidades sobre nosso exótico instrumento em terras brasileiras, ok? 
Muita coisa rolando por aqui. 

Vielisticamente,


terça-feira, 15 de julho de 2014

Do Brasil, mas não no Brasil: música na mochila e Gregory Jolivet


Eu não sei se é o mundo que é pequeno mesmo ou se é o mundo da viela de roda que consegue ser ridiculamente minúsculo, mesmo com todos os seus vielistas espalhados pelos sete cantos do globo. O que eu sei é que essa semana tive duas surpresas lindas ao me deparar com um episódio do programa Música de Bolso, do canal Bis.

O programa acompanha Guto Guerra e seu ukulele por todo o planeta, mostrando músicos de todos os tipos e estilos tocando por vários lugares e em diferentes situações, todas terminando com uma pequena jam entre eles e o próprio Guto.

Na França, o apresentador não só conversou com os caras do Les Musicien de St. Julien (que estiveram aqui ano passado e sobre os quais escrevi aqui), como também conversou com um dos vielistas que mais admiro no mundo - até porque é um dos melhores, sem exageros: Gregory Jolivet.

Eu conheci o trabalho do Gregory solo com sua espetacular Scottishe Urbaine (vídeo ali embaixo); e depois descobri pequenos trabalhos dele aqui e ali, como o grupo de música folk francesa La Machine e um ou outro show que ele fez com a Loreena McKennitt.


Depois, também por pura coincidência, descobri que o Laurent, meu professor no Conservatório de Bourges, também tinha sido professor dele, aumentando mais minha admiração por seu jeito energético e tão característico de tocar.

Gregory toca uma viela alto construída por Philippe Mousnier, luthier mais que unique e inovador em vários sentidos. 

Foi com uma belezura dessas que Gregory demonstrou todo seu virtuosismo neste episódio do Música de Bolso (número 5, da terceira temporada).


Fiquei super feliz de ver um brasileiro conhecendo a viela de roda lá, onde a coisa existe pra valer. Mas confesso que rolou um certo ~recalque~ porque nós estamos aqui, firmes e fortes, fortalecendo a pequena comunidade de músicos que giram manivelas. Além disso, o site havia colocado que Gregory Jolivet era especialista em órgãos e meio que ignoraram o nome do instrumento, utilizando vez ou outra o vocábulo francês vielle à roue

Tudo que sei é que eu fui ~xingar muito no twitter~, mas na minha página pessoal, de brincadeira mesmo. Não esperava que fossem atrás do instrumento em português porque né, ninguém sabe que ele agora existe por aqui... Mas pasmem: para minha surpresa, no dia seguinte me deparei com isso aqui.



Já agradeci no twitter, mas não custa deixar mais um obrigado aqui pela consideração de corrigir esse erro HORRENDO - brincadeira - por terem tido tamanha consideração.

E que num futuro alguma matéria de TV seja feita conosco aqui no Brasil. 
A gente merece, vai. =)

Vielisticamente,


quarta-feira, 9 de julho de 2014

Eight's a charm - No Brasil: Nayane Spigoti


Poucas vezes na vida podemos nos preparar para um momento em que nossa estrada muda de curso e tudo ganha uma nova cara, sob uma nova luz. Hoje foi um desses dias para nossa querida amiga Nayane Spigoti, que viveu um desses momentos mágicos - um pelo qual ela esperou, e muito - ao receber sua linda viela de roda. Vindo diretamente dos confins de Lancashire, na Inglaterra, Wren foi construída pelo mesmo luthier da minha viela de roda, o simpático e talentoso Neil Brook. Posso dizer que minha Lyanna agora tem um irmãozinho lá em São Caetano do Sul, em São Paulo. Oitava viela de roda (não contando as sinfonias dos grupos de música antiga) a chegar no Brasil. 

Apesar de ser a segunda viela construída por Neil a chegar por aqui, ela ainda é a única do modelo Wren, feito especialmente para aqueles que estão iniciando essa aventura que é tocar viela de roda. É um modelo simples, compacto e extremamente charmoso. Eu realmente não sei o que é ter um instrumento tão prático para carregar (eu sempre pareço estar carregando um caixão de anão nas costas), por isso acho que é um instrumento válido não só para iniciantes, mas para todo mundo que vez ou outra precisa viajar com sua viela ou carregar ela para sessions. Além disso, o Wren vem com tudo que uma viela de roda precisa ter: trompette (cachorro), bordões, cordas cantoras e e tudo mais. Vale muito a pena.

Nayane conheceu e se apaixonou pela viela através da banda Eluveitie, que traz a linda Anna Murphy, sempre encantando mais pessoas e trazendo mais jovens ao fantástico mundo da viela de roda. O que me fascina nisso tudo é que uma coisa é você ver o instrumento e se encantar, outra coisa é fazer o que a Nay fez (e eu fiz, e todos nós da pequena comunidade vielística fizemos), que é embarcar de cabeça num projeto que é trabalhoso e delicado sim: conseguir uma viela de roda. 

Mais uma vez vemos que apesar das complicações, é tudo uma questão de planejamento. Nayane levou aproximadamente três anos desde sua decisão até ter o instrumento em mãos, hoje. Segundo ela, esse período ainda contou com os seis meses na fila de espera, alguns meses na fabricação e mais uns meses para quebrar a cabeça sobre como trazer o instrumento. Passar pelo processo de pesquisa sobre transferências bancárias, datas, taxas, preços... Ufa! Tudo isso pode ser muito exaustivo, e às vezes é só o começo, já que ainda precisamos pensar e repensar como e quando buscar a viela, decidir se a confiaremos aos correios (don't), se vamos busca-la ou se alguém nos fará o favor de traze-la. Mais uma vez: é questão de estudar e planejar, sempre com calma e foco.

Hoje acabou sendo um dia especial para mim também, porque não tem como presenciar isso e não ficar feliz, não ser tocado pela sensação de sonho realizado. Há quase três (!) anos quem vivia esse momento era eu; e é pra sempre, mesmo. Sei que isso soa um pouco dramático, mas a sensação de impotência diante de querer um instrumento desses já soa como uma constante lá fora, onde a mobilidade é mais em conta e há menos barreiras, então imaginem em nosso país. Sabemos que não é fácil, por mil razões: o preço, a não-existência de vielas por aqui, o tempo de espera etc. E hoje mais uma pessoa foi além dessa ideia assustadora de... Ter uma viela de roda no Brasil. E crescemos mais um pouco.

Deixo aqui meus parabéns à Nayane e ao BeanSidhe, por terem realizado juntos esse sonho. Agora temos a oitava vielista de roda de nosso país, curtindo um instrumento lindo e logo logo vindo à tona com um trabalho legal e porque não, promissor? Digo isso porque antes da grana e às vezes até mesmo do talento, o que conta é a paixão; e a sua paixão é nítida, Nay!

Vielisticamente,

;-)


terça-feira, 17 de junho de 2014

Eu e minha viela: pequeno vídeo


Em maio a tantas coisas que ocorreram ultimamente, esse presente tão especial que ganhei ficou temporariamente esquecido. Para quem não sabe, no final do ano passado gravei um pequeno vídeo informativo sobre a viela de roda, onde não só explico como o instrumento funciona, mas também conto um pouco da minha história. Esse lindo trabalho foi gravado, editado e produzido pelo querido amigo Pedro Costa.

É engraçado olhar para tão pouco tempo atrás e reparar em coisas que já mudaram. Minha postura, meus dedos, a mão na caixa das teclas... Enfim, perfeccionismos à parte, fica o vídeo para quem ainda não me viu tirando um som da minha Lyanna. Vale a pena. 

Basta clicar aqui.



Vielisticamente,

;-)

quinta-feira, 12 de junho de 2014

No Brasil: Raine Holtz


O algodão ruivo é o Fox Fiber, produzido pelo Mel Dorries

Este não é um post sobre algodão, diretamente.

Esse pacotinho chegou essa semana para mim, em boa hora, já que eu estava matando viela a grito com o algodão que estava usando por aqui. A boa alma que me enviou isso? Raine Holtz, diretamente de Curitiba. Acho que todo mundo que lê esse blog sabe o que um punhado de algodão significa para nós, então não tenho medo de dizer que estou até agora radiante com esse presente. hahaha

Raine abençoando o algodão que ia me enviar BRINKS
(Jantar Medieval taberna folk VI, 24/05/2014)

Engraçado mesmo é pensar que até alguns meses atrás eu estava sempre à procura de pautas para o blog e hoje, vejam só, existem "mil coisas" acontecendo na ~~~ cena vielística brasileira ~~~ e ao dizer mil coisas eu estou me referindo a uma só: Raine.

Eu já havia feito um post sobre o lindo trabalho do Through Waves - que vai muito bem, obrigado, lançando logo logo um novo EP - mas hoje estou aqui para falar do que esse ser iluminado vem aprontando por nossas terras, fazendo música ao vivo e mostrando a viela de roda para pessoas que nunca imaginaram sua existência.

Quando entrei em contato com Raine pela primeira vez, eu estava falando com um artista super reservado, com algumas ressalvas em relação a se apresentar ao vivo e expor seu trabalho, que teve uma origem mais terapêutia/catártica antes de qualquer pretensão mais, digamos, artística. (Ledo engano, Rainnsss)

And this is what I use to release the awesomeness
Fato é que Raine hoje já é praticamente uma celebridade, constantemente filmado e fotografado em suas tardes tocando pelas ruas de Curitiba e já até participou de dois jantares medievais Taberna Folk. Quem diria, um vielista brasileiro ganhando popularidade tocando nas ruas. (!)

Raine não só tem crescido enquanto artista, mas tem o feito levando a viela de roda diretamente às ruas de sua cidade, o que é um ato tão nobre, mas tão nobre, que ninguém tem noção. Essa atitude linda já gerou bons frutos para nosso pequeno mundo, e Raine apareceu em algumas matérias jornalísticas sobre seu trabalho e, claro, sua viela.

Com Luis FitzPatrick
Além de participar de jantares medievais e de embelezar as ruas de Curitiba, Raine ultimamente tem se reunido com diferentes vielistas brasileiros, algo que só pode ocorrer de forma mais imediata lá pelas bandas dele, já que o Paraná conta com nada mais nada menos que TRÊS dos raros vielistas brasileiros. Raine andou trocando figurinhas com os outros dois (!) vielistas, que fazem parte da banda Gaiteiros do Lume (em breve um post sobre eles!), a saber, Mateus Sokolowski e Luis FitzPatrick.

Raine e Mateus. Dava uma dupla folk vielíestica (Y)
Acho incrível como aquelas bandas são férteis para a viela de roda. Além de Raine, Mateus e Luis, logo contaremos com uma vielista nova também. Bom, isso é assunto para depois. Fiz esse post mais para registrar a alegria que é ver essas coisas acontecendo, música sendo feita por mais de uma viela de roda aqui no meu país. Pessoas se encontrando para tocar e trocar experiências. Isso é lindo.

Deixo aqui meu agradecimento ao Raine pelo algodão, pelo apoio e pelo carinho. E desejo sorte a esse bando de vielistas de roda jogados por aí. Continuem a divulgar nossa paixão, mostremos cada vez mais nosso instrumento lindo; e vamos abduzindo mais gente pra esse mundo nosso.



*A vielas dos Gaiteiros do Lume foram feitas por Xaime Rivas (para do Luis) e Jaime Rebollo (para o Mateus), ambas galegas.  A viela tocada por Raine Holtz vem dos EUA, tendo sido construída por Mel Dorries.

Vielisticamente,

Rique