domingo, 1 de outubro de 2017

Bardow Folk - Brasília


Dando continuidade aos posts sobre novos artistas brasileiros que incorporam a viela em seus trabalhos, hoje dou voz ao Bardow Folk, projeto nascido e criado em Brasília, idealizado pelo Weivson Andrade, que foi mais que gentil em me falar sobre seu projeto tão detalhadamente que nem me dei o trabalho de escrever. simplesmente compartilhando suas palavras abaixo.



"O Bardow é um projeto musical onde misturo diferentes segmentos artísticos com o objetivo de contar histórias. Sempre tive fascínio por História, culturas antigas, por literatura, por artes plásticas, fotografia, cinema e música. O projeto é a culminância de tudo isso dentro de um contexto onde procuro inserir o público, afim de entregar a cada um uma experiência que vá além da música em si.

Tive o privilégio de morar e estudar na Irlanda, lugar pelo qual sempre fui atraído e fascinado. Estudei gaita de foles com um músico de um pub onde trabalhei, sou apaixonado pela música tradicional irlandesa. Revezava meu tempo entre o trabalho, o curso de cinema que fiz lá e as aulas de gaita. No caminho entre um compromisso e outro conheci um músico de rua que me apresentou o hurdy-gurdy. O curioso é que meses antes eu havia passado por uma experiência intrigante, mas preciso abrir um parêntese aqui para que isso seja compreendido. Quando mais jovem em um de meus delírios adolescentes em criar algo "completamente novo e extraordinário" eu imaginei e desenhei o projeto de um instrumento semelhante a um violino, mas que fosse mais simples de tocar e que o som fosse contínuo, talvez originado em uma roda ao invés do arco. Então eu desenhei algo que se parecia com a antiga máquina de costura da minha avó, cuja força motora era um dispositivo acionado pelo pé, que girava uma roda através de uma polia. Basicamente era um projeto inexequível, mas sempre tive isso na cabeça. Voltando à experiência, fiz uma viagem à Saint Malo na Normandia e me deparei pela primeira vez com o hurdy-gurdy. Foi um choque ver aquele instrumento, primeiro porque tive aquela sensação de que diabos é isso? misturado com a excitação de ver que como aquilo funcionava e um estranho sentimento de já conhecer aquele objeto. Não consegui falar com o instrumentista pois ele só falava francês e eu não entendi uma vírgula do que disse. Bem, quando então na rua Grafton em Dublin eu tive acesso à um hurdy-gurdy e consegui me comunicar com o instrumentista, foi amor à primeira vista. Passei a trocar tempo com o instrumento, e algumas dicas e porque não dizer aulas do instrumentista, por um bom papo, café, muffins e as vezes refeições completas que fazíamos no Stephen's Green Park que ficava perto dali. Aos poucos fui me habituando com o instrumento e desenvolvi uma paixão inexplicável. Aos poucos também fui perdendo contato com o instrumentista até que voltei ao Brasil. A ideia para o criar o Projeto Bardow já estava na mente, mas o acesso à instrumentos de qualidade aqui era quase inexistente. Acabei por gastar muito do meu tempo enquanto músico na cena Rock n Roll de Brasília que é bem movimentada, mas era tudo o que eu podia fazer enquanto músico. Quando então em meados de 2016 uma amiga americana disse que havia me enviado um presente. Ela sabia da minha paixão pelo instrumento. Ela não conhece absolutamente nada sobre o instrumento apenas viu um e resolveu me presentear. Quando descobri o que ela havia postado fiquei feliz pela atitude mas triste por saber que um bom instrumento estaria muito além do que alguém como ela gastaria para presentear alguém como eu. Mas esperei ansioso pela chegada. Quando chegou minhas expectativas sobre a qualidade do instrumento se confirmaram. Era rústico, despretensioso, e faltou muito carinho no acabamento. Ele ficou parado algumas semanas, não consegui tirar qualquer som perto de algo que não fosse no mínimo irritante. Daí resolvi criar coragem de arriscar destruí-lo tentando deixa-lo ao menos funcional. E deu certo! Desmontei, tratei a madeira, mudei as cordas, desempenei a roda, ajustei as tangentes montei e consegui que ele desse um som quase satisfatório. Sobrava harmônicos ainda, mas consegui amenizar com as cordas de tripa e um algodão mais espesso. Pronto, era o que eu tinha em mãos para começar a colocar o projeto em prática, e desde então tento tocar o Bardow com o que tenho. Sonho em ter condições, em algum momento, de comprar um bom instrumento. Até lá vou me virando. Namorei por meses a viela da Raine Holtz quando ela anunciou... mas um dia chego lá!"

Muitíssimo obrigado ao Weivson, que história fantástica. Muita sorte e sucesso! E viela de roda, é claro. =)

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Feira Medieval UFF - Niterói - RJ


- Mas é feio, o bichinho! Meu deus!

Eu já estava há algumas poucas horas tocando minha viela embaixo de uma árvore quando ele chegou. Virei para o lado já rindo em alto e bom som, sabendo que não se tratava de apenas mais um entusiasta da cultura medieval passando pelo jardim da reitoria da UFF, pronto para ouvir música antiga e provar hidromel. Ele ali, de cara, já era meu espectador mais ilustre. Incrédulo, num misto de pena, admiração e curiosidade. Ah, agora ele tá ali ó, no disérto, andando cus camelo, disse ao ouvir a menor harmônica. Nessas horas meu sorriso brota mais fácil que ao ver dinheiro caindo no meu case.
Seu modo de vida e meu instrumento tem muito mais em comum do que ele e as pessoas de forma geral imaginam. Apesar de a viela de roda ser hoje, no Brasil de 2017, um dos instrumentos mais caros de se conseguir; ela teve uma enorme parte de sua história associada a mendigos cegos, músicos itinerantes e pedintes. Dos meus visitantes na rua, os moradores dela são sempre os mais ilustres. É como se eles tivessem mais direito a ouvir a música que toco, é como se eles soubessem disso tudo. Rola uma vibe de reencontro que é mais forte que eu. E eles nunca falham em seus comentários, que muitas vezes fazem alusão a deus e ao mundo espiritual que as cordas da viela aparentemente evocam.

Esse foi apenas um dos momentos lindos que vivi esse domingo (22) na reitoria da Universidade Federal Fluminense (UFF), na feira medieval que encerrou o Festival Conexões Musicais UFF UNIRIO, que além de concertos e aulas ofereceu também tardes de palco livre para quem quisesse apresentar seu trabalho. Confesso que apesar dos meus contatos nesse meio e do fato de eu estar sempre conectado e antenado, não ouvi falar do festival e perdi absolutamente tudo que ele ofereceu, com a grata exceção da feira em questão.


Apareci na reitoria da UFF por volta de 11:45 da manhã com viela nas costas, mochila e um banquinho nos braços. Meu papel esse ano seria exatamente esse: sentar embaixo de uma árvore e praticar, chamar a atenção dos transeuntes da forma mais natural possível, longe do palco e do formato de show/concerto que tanto conhecemos. O busking me proporciona uma leveza que não sei descrever. É bem especial. Sempre. Cada vez aprimoro mais a arte de tocar repetindo "viela de roda" a cada dois minutos. =)

A feira foi absolutamente linda. Barracas de artesanato temático, comidas, hidromel, vestimentas e sucos encheram o jardim de cores. E os figurinos estavam lindos demais. Consegui curtir as apresentaçãos da orsquestra do festival, do coro da UFF, do lindo dua Olam Ein Sof e o showzaÇÃO dos amigos da Banda Tailten. Todos de parabéns! De quebra, na hora da grande dança comandada pelo maravilhoso Mario Orlando (Música Antiga da UFF) o público participou e o querido Eduardo Antonello (multi-instrumentista que também contempla a viela) veio me arrancar da árvore para que eu desse uma forcinha com meus bordões e meu trompette. Foi divertidíssimo! Fica meu agradecimento especial a esse músico fantástico, pessoa tão gentil. 


Depois disso voltei ao meu cantinho, onde fui carinhosamente recebido pelos que ali passavam. Aproveito para agradecer à Carol Domingues, querida amiga que me obrigou a abrir o case e conseguir uma graninha extra. Amei tanto!

Foi um dia realmente inesquecível. Pude dar um oi para pessoas que admiro muito como o Eduardo, o pessoal do Música Antiga (em especial a Virgínia =) ), a linda Kristina Augustin e meus amigos que apareceram por lá.

Que venham os próximos anos e as próximas feiras.



sexta-feira, 28 de julho de 2017

No Brasil: Grupo Ucelli


Dando continuidade a série de posts sobre os nossos artistas que tem feito uso da viela de roda, seguimos para Goiânia, onde o Grupo Ucelli surgiu e tem feito música antiga há alguns anos. De acordo com Beatriz Pavan, responsável pela viela de roda e pela espineta no grupo, o  nome UCCELLI significa pássaros. 

O grupo surgiu em 2013 a partir do interesse em se pesquisar a música medieval utilizando instrumentos cópias dos originais. O quinteto é formado por flautas doces, rabecas, percussão, voz espineta e viela de roda. E o interesse pela viela veio a partir da necessidade de incorporar ao grupo um instrumento que fizesse bordão e mesmo melodia nos arranjos das peças, que vem basicamente do "Livro vermelho de Montserat", "Camina Burana", "Canções de Santa Maria" além de obras do cancioneiro brasileiro de tradição oral.

Os descobri porque em janeiro quando vielista do grupo, Beatriz, entrou em contato comigo. Ela havia recebido sua viela de roda (a famigerada viela do Ebay) e estava com problemas nos ajustes e manutenção de seu instrumento. Infelizmente não pude ajuda-la como gostaria, já que estamos em estados diferentes. De qualquer forma, pessoas, devemos sempre estar atentos a essas vielas -  não custa lembrar - pois elas acabam sempre funcionando como armadilhas e podem frustrar quase que irreparavelmente alguém que dedicou tempo e dinheiro a sua compra.

A boa notícia é que hoje a Beatriz também possui uma symphonia (modelo medieval) contruída pelo vielista húngaro Robert Mandel. Sobre seu novo instrumento Beatriz me disse estar muito satisfeita com seu som; e acrescentou que acredita que logo logo teremos  construtores de vielas por nossas terras, popularizando ainda mais o instrumento.

Obrigado Beatriz pela sua atenção. Tudo de bom a você e sua nova symphonia!

Vocês podem seguir o UCELLI no instagram. =)


quarta-feira, 26 de julho de 2017

Entrevista com Pablo Lerner (2017)


Há uns anos atrás eu já havia escrito sobre o Pablo aqui. Recentemente encontrei essa ótima entrevista com ele conduzida em janeiro (como estava viajando eu acabei me esquecendo de postá-la). Durante seu último período aqui no Brasil, Pablo integrou o grupo Cordal com seu tekerolant (nome húngaro para a viela de roda).  

Descobri recentemente que Pablo não se encontra mais em terras brasileiras, ainda assim. Deixo aqui outro vídeo sensacional que fala mais que quaisquer palavras que eu possa usar para descrever sua arte.


terça-feira, 25 de julho de 2017

No Brasil: Asa de Grilo Folk


É com muita alegria que escrevo esse post. Já faz algum tempo que venho reparando o surgimento de alguns novos grupos e artistas que tem incorporado a viela de roda em seus trabalhos e eu sempre na correria esqueço de lhes dedicar o devido tempo. Hoje consegui; e só queria repetir que é sempre uma surpresa feliz ver nosso instrumento ganhar cada vez mais espaço por aqui. 

O post de hoje é sobre um desses grupos que eu tenho encontrado - e um com mágica já em seu nome - o Asa de Grilo Folk (como não amar esse nome?). Os conheci há alguns meses no (pasmem!) #instagram e não demorei a entrar em contato com o André. O trio então respondeu algumas perguntas sobre o projeto. Foram super solícitos, tanto que me bastou copiar e colar suas respostas. 

Com vocês, Asa de Grilo:


- De onde vocês são e como o grupo surgiu? Qual a trajetória dos membros?

Moramos em Chapecó, Santa Catarina. O grupo surgiu a partir de festas
medievais que fizemos aqui na região há alguns anos. No início,
juntamos alguns amigos que tinham interesse em repertório medieval e
folk para ensaiar alguns temas, com o intuito de toca-los nessas
festas. Deste grupo inicial, persistiram na proposta André e Thiago,
criando algumas músicas inspiradas na linguagem folk, medieval,
renascentista e céltica. Este ano Ricardo passou a integrar o Asa de
Grilo, que fez recentemente sua primeira apresentação.

- Poderia nos falar um pouco sobre a trajetória dos membros?

André Luiz Onghero - Dedica-se à música há 22 anos, compondo e tocando
vários instrumentos, principalmente guitarra. Participou de várias
bandas de rock, blues e folk. Desde 2007 começou com experiências e
pesquisas sobre construção de instrumentos musicais medievais. No Asa
de Grilo, compõe e toca violino, violão, gaita de fole, viela de roda,
flauta, escaleta e percussão. Profissionalmente, atua como historiador
e tem formação na área de história e educação.

Thiago Cardoso de Aguiar - Há cerca de 10 anos iniciou sua trajetória
musical, participando de bandas de rock e heavy metal como cantor e
compositor. O interesse pela cultura medieval o motivou a criar a
parceria musical com o André e também a fabricar hidromel. No Asa de
Grilo, além de compositor e vocalista, ele toca flauta, violão, gaita
de fole, escaleta e percussão. Profissionalmente, é atendende
comercial.

Ricardo Parizotto - Participante mais recente do grupo, dedica-se ao
violão há 8 anos. O interesse pela música medieval surgiu após
conhecer os integrantes do grupo, onde hoje toca violão e percussão.
Profissionalmente atua como professor universitário.


-  De onde vem o nome Asa de Grilo?

Apesar do projeto já ter alguns anos, está mostrando sua produção
apenas agora em 2017. O nome também é recente e consideramos que ele
representa bem a proposta sonora do grupo. Afinal de contas, o grilo é
um animal que existe em todos os continentes e que é personagem do
folclore de várias culturas. Além disso, é pelo raspar das asas que
ele produz o seu som característico, o que meio que o transforma em um
instrumentista. Então a mescla destes elementos nos motivaram a
escolher Asa de Grilo como nosso nome.


-  Como conheceram a viela de roda e como incorporaram o instrumento à
banda? Vocês mesmos a construíram?

Eu (André) conheci a viela de roda em 2001, em um simpósio de história
que aconteceu na UFF em Niterói, quando vi alguns grupos de música
antiga e me interessei muito por música medieval e pelos instrumentos
que eles usavam, entre os quais, a viela de roda.

Em 2007 resolvemos fazer uma festa medieval e aí comecei as tentativas
de fazer instrumentos. Inicialmente tentei fazer um alaúde, mas ficou
algo muito tosco, o que não impediu de tentar mais algumas vezes,
ainda que sem sucesso. Parti para as flautas, obtendo resultados
satisfatórios. Queria também fazer gaitas de fole e vielas de roda, e
fiz várias tentativas frustradas. Após muita pesquisa, em 2013 comprei
um torno para madeira e as ferramentas específicas, conseguindo
construir a minha primeira gaita de fole. Depois disso, continuei a
produção e já fiz várias gaitas, que usamos no grupo. Em 2015, fiz uma
viela de roda sem muito planejamento e que não deu muito certo, mas me
ajudou muito a entender as peculiaridades do instrumento. Após certo
tempo planejando, em 2016 comecei a construir esta que estou usando,
ainda em caráter experimental e já identificando vários itens a
aperfeiçoar nos próximos projetos. Mesmo ela sendo um instrumento a
ser aperfeiçoado, não nos impediu de a usarmos, inclusive
disponibilizamos alguns videos de músicas nossas tocadas com ela.

- O repertório de vocês é autoral?

Sim, nosso repertório é majoritariamente autoral. Temos vários temas
instrumentais e algumas canções, e, como forma de contextualização,
tocamos algumas músicas medievais, renascentistas e folclóricas. Fica
o convite para conhecer o nosso trabalho no youtube ou em nossa
página do facebook

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Eu sempre - sempre mesmo - fico impressionado com essa característica tão nossa quando o assunto é a viela de roda. Estamos aqui meio isolados do mundo vielístico europeu, e não são tão raras as pessoas que vem tentando construir vielas. Meus sinceros parabéns a todos vocês.

E meu muitíssimo obrigado ao André e os rapazes do Asa de Grilo. Sucesso pra vocês!


sexta-feira, 14 de julho de 2017

Letícia Grockotzki e a Notação para Viela de Roda

Letícia (com sua viela de roda), no dia da banca de seu TCC, com seu orientador (à esquerda) Professor Felipe Ribeiro e seu segundo avaliador, Professor Fabio Poletto.

Que o mundo da viela de roda no Brasil vem crescendo, todo mundo já sabe. A novidade deste post, na verdade, está no fato de algo muito especial ter ocorrido no âmbito acadêmico musical: a conclusão do interessantíssimo trabalho da querida Letícia Grockotzki, vielista Curitibana que acaba de se formar no Curso Superior de Composição e Regência pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná.

Letícia é uma amiga especial, musicista de sensibilidade artística única; e já participou aqui no blog com um relato muito bacana sobre a visita do super-vielista Matthias Loibner aqui no Brasil. Sobre seu trabalho, Letícia nos diz:

Quando eu precisei decidir o que eu faria em meu Trabalho de Conclusão de Curso, pensei em fazer sobre algo que eu gostasse, e que fosse útil de alguma maneira. A viela-de-roda veio em minha mente também por ser um instrumento pouco conhecido, mas que precisa ser conhecido! Por quê? Porque tem um potencial musical magnífico e uma história muito interessante para ser estudada. Então decidi escolher o modelo de trabalho teórico e, como eu precisava encaixar na minha área, decidi estudar a questão da notação para o instrumento, que se alinha com o ramo da composição.
Durante a pesquisa entrei em contato com vielistas de vários países e foi um trabalho bastante enriquecedor, pois pude reunir informações de diversos materiais e acima de tudo, aprender muito. Hoje passo para quem tiver interesse todo esse aprendizado. Não foi fácil, e acredito que ainda há muito o que melhorar. À quem ler, se tiver alguma dúvida, observação, crítica, sugestão, estou à disposição para recebe-las.

Abraço!

Leticia Grockotzi Goularte"

E para quem se interessar em ler o trabalho da Letícia, não pense duas vezes antes de contacta-la aqui:  leticiagrots@gmail.com

É muito legal saber que o mundo de potencial da viela no meio musical é reconhecido e estudado por aqui. Meus sinceros parabéns a essa musicista tão especial que levou nosso querido instrumento à esfera acadêmica com seriedade e carinho mais que merecidos. Sucesso, Letícia!


segunda-feira, 27 de março de 2017

Vielas em Estocolmo



Juntar grana, planejar e meter o pé. #repeat

Meus últimos anos foram basicamente isso aí: juntar cada realzinho, abrir mão de saída com amigos, deixar de assistir aquele filme cinema e deixar de comprar aquela camisa maneira... Tudo para que em janeiro, durante minhas férias, eu pudesse conciliar essa paixão que é viajar a essa loucura que é a viela de roda em minha vida. Pois bem, nessa brincadeira eu já consegui chegar em Gales, França, Suíça e Alemanha. Perrengues? Sim, sempre. Frio absurdo? Lógico. Estresse em relação ao transporte do meu instrumento? Claro. Pobreza ao retornar ao Brasil? ÓBVIO. Mas pergunta se eu me arrependo? (nope). 



Dessa vez eu fui conscientemente mais pra cima, não deixei a vida me levar para só então eu ver quem estaria pelo país escolhido. Dessa vez eu escolhi alguém que eu venho admirando há pouco mais de dois anos; e deixei para ver o que o país teria a me oferecer quando estivesse lá. E olha, a Suécia não decepcionou. Nem Johannes.

No mês de janeiro tive o prazer de experimentar muitas coisas pela primeira vez: viajar num navio, ver a aurora boreal, estar o mais longe possível de casa... Já a aula com alguém que eu admiro, apesar de não ser uma primeira vez, teve esse gostinho também.  Digo isso porque tive a sorte de estudar com Johannes Geworkian Hellman, vielista das fantásticas bandas Symbio (na realidade um duo sanfona + viela) e Garizim (apenas responsável por dois dos melhores CD's folk que eu já tive a sorte de ouvir na vida). Eu já tenho alguma experiência com essas aulas intensivas que eu arrumo mundo afora, e se tem uma coisa que eu tento manter em mente é que a grande sacada de encontros como esse é você saber registrar e observar o que está sendo passado lá na hora para depois, em seu tempo, deixar tudo sync in e trabalhar com calma. Dessa vez não foi diferente. A quantidade de informações que Johannes transbordava era realmente impressionante, cada segundo em suas aulas valeu a pena e eu terei trabalho pro resto da vida. 

Nosso trabalho durou duas tardes inteiras na Royal College of Music, onde Johannes fez a gentileza de agendar uma sala. Falando em gentileza, devo ressaltar que esse grande vielista não para quieto nunca, estando sempre entre gravações e shows, o que torna os espacinhos de sua agenda bem concorridos. Fora isso, Johannes estava passando por um período conturbado de sua vida devido ao falecimento de seu pai... Serei eternamente grato por ele ter tirado um pouco de seus dias, - num fim de semana, aliás - para me dar atenção. Foram dois dias que valeram por anos, tamanha bagagem que eu trouxe de volta para trabalhar.

Fica aqui o registro de mais um divisor de águas nessa minha estrada. 



quarta-feira, 1 de março de 2017

Em Praga: conhecendo Jiří Wehle


As coordenadas para aquele dia, mais uma vez em um inglês truncado, eram basicamente as mesmas: castelo de Praga. Desta vez, entretanto, eu possuía alguns detalhes a mais; incluindo uma ladeira, uma escadaria e uma curva. Por outro lado, a razão de minha pequena aventura havia me avisado sem dó que aquele era um dia frio e ele não ficaria até tarde em seu bom e velho canto. Tocaria menos que o normal.

Naquele dia eu teria literalmente dia inteiro pela frente; e à noite pegaria um ônibus para Budapeste. Só Deus sabe quando volto aqui, eu pensei. E mesmo assim tentei me enganar numa falsa aceitação. O plano era bem simples, na real: passear pela cidade velha e fazer hora perto da rodoviária. À noite pegaria um ônibus pra Hungria e eu queria apenas relaxar. Sendo assim, subir mais uma vez o castelo de Praga envolveria algum dinheiro a mais para passagens, tempo, e sem dúvida, o risco quase mortal de mais uma vez correr por aquelas ruelas sem encontrar o bardo que há muitos anos havia me cativado em um vídeo amador gravado nas ruas de um local desconhecido por mim. O medo era grande pois no dia anterior eu já havia entrado em contato com  Jiří Wehle e tentado em vão encontra-lo pelas ruelas do Castelo, sem sucesso. E doeu, viu. Amada companheira de viagens e talentosa baixista, minha querida amiga Ana só faltou me empurrar. Você vá e rode aquilo tudo, temos tempo e você vai se arrepender se não encontrar esse homem. Então fui. E comecei minha busca a partir de uma praça diferente. A ladeira mencionada já estava diante de mim; e a  subida,  com meu bom Zigfried nas costas, ficou ainda mais pesada que o esperado.



Subi, subi, subi até chegar aos pés de uma escadaria. A curva à direita logo revelou uma ladeira ainda mais íngreme, cheia de turistas subindo e descendo. Arrisquei e dei alguns passos a frente. Já na metade da ladeira, lembrei do quão perdido eu sou no que diz respeito a direções e mapas e eu tive a certeza amarga de estar na rua errada, perdendo o precioso tempo que tinha para apertar a mão de um dos poucos seres humanos que ainda vivem nesse limiar estranho, com os dois pés no passado e a voz no presente, roubando mentes e mãos; cativando mais pessoas do que ele sabe. Voltei à escadaria, somente para paquerar a vitrine da loja de sorvete de absinto e dar meia volta. Se era pra estar errado, que eu seguisse o equívoco até o fim.


Foi entre uma música e outra que o tamanho da minha estupidez caiu sobre minha cabeça. Como numa cena de filme, meu fone silenciado deu lugar a uma corda levemente desafinada. Um som fraco, distante. Trompette. Uma voz aguda e cansada. Jiří Wehle estava mais à frente e eu gelei. 

Ao me ver me aproximando, ele parou de  tocar. Me apresentei, apertei sua mão e agradeci sua boa vontade em responder minhas mensagens. Jiří me disse que dei sorte de ter chegado a tempo, pois suas mãos já estavam bem geladas e ele queria ir embora, o inverno complica tudo, e ele fala com mais jovialidade que eu esperava. Me pergunto até que ponto estou conhecendo o músico, o bardo ou o personagem - nah, é bardo mesmo. rs Após um silêncio um tanto constrangedor, Jiří perguntou timidamente se o que eu tinha nas minhas costas era uma viela; e ficou bem animado ao vê-la, elogiando o acabamento e dizendo que a dele era bem mais simples. Ficamos alguns minutos trocando informações sobre luthiers que nos agradam e ele curiosamente me confessou que apesar de possuir uma viela feita por um dos melhores do mundo, ela não o satisfaz - prefiro isso aqui, é muito mais alto!

Nosso papo também passou por afinações e bordões que nos agradam, o que foi surreal porque eu esperava apenas ouvi-lo tocar e dar tchau. Foi então que senti que ele precisava tocar porque algumas pessoas estava parando em frente ao seu carrinho, o encorajei a faze-lo e coloquei algumas moedas em seu potinho, pedindo para que continuasse. Acenei, agradeci mais duas vezes e enquanto ele tocava tentei apreciar a vista da cidade ao som desse homem que sempre me inspirou. Me afastar mais que isso me pareceu impossível. Foi um dos momentos mais mágicos da minha vida. Como eu amo estar entre o presente e o passado - e quanto passado essa cidade tem, e como os sons produzidos por Jiří tem história. Os ecos estão ali para quem quiser ouvir.


Após duas músicas, bastou apenas eu dar um passo na direção oposta para eu me dar conta da segunda estupidez do dia: não comprar seu disco. Volto eu, muito constrangido e tento perguntar o preço do CD em questão. Como ele não possuía troco, Jiří me ofereceu um como lembrança e eu prontamente recusei. E eu lá vou desconsiderar o trabalho de um músico de rua? Troquei meu dinheiro numa barraquinha mais acima, comprei seu CD, o agradeci imensamente e segui meu caminho com o coração pequenininho e o som de sua voz se perdendo pelas ruas.

Esse instrumento é mágico sim. Não digam o contrário.

Nunca.