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Gales: terra de dragões |
Enquanto o avião descia pelas nuvens, a turbulência era absurda. Eu estava apertando os braços da poltrona, gelado. Foram dois anos trabalhando com mentalizações e e-mails (gordinha wicca mode: [on] - off) e agora sim, depois de toda aquela energia aplicada, o que eu mais soube esperar e desejar com força brutal estava finalmente se materializando *insira aqui sua piada sobre The Secret*. Ao meu ver, não era só um instrumento. Era a concretização de uma viagem épica, de uma grana pesada e claro, de um novo rumo na minha carreira e, consequentemente, na minha vida. Se pararmos para pensar, é muita coisa para trazer de um plano mental para este plano físico, então era bem óbvio que o processo traria, no mínimo, uma turbulênciazinha no meu pouso em Gales (não acredito que escrevi essas coisas aqui. Blogs me deixam sincero de mais, mas é isso aí.), mas eu nem refleti sobre isso e enquanto aquela p$#@% de avião sacudia mais que um trem velho eu morri de medo e quase me arrependi de ter começado tudo isso. Só que não.
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Gales: terra do quê?! |
Ao descer do avião, o esperado: cinza e verde imensos, mas sem dragões à vista. Na verdade, sem nada à vista, nem mesmo dinheiro (tive que trocar alguns euros por libras para usar o orelhão porque esqueci do detalhe de que em Gales uma outra moeda é utilizada.
Boa, Henricão. Freakin' genious!) ou pessoas, já que todos desceram do avião e sumiram em 5 minutos e eu fiquei lá, esperando Chris e sua esposa. Em pleno domingo de halloween. Falei com eles ao telefone (um orelhão para o qual eles retornaram para avisar sobre o atraso, me causando o constrangimento internacional de atender um orelhão no meio do aeroporto com a maior naturalidade), e voltei a curtir o cd do
Carreg Lafar que não parava de tocar. Eu não relaxava por nada. Sozinho em Gales para buscar um hurdy-gurdy. Só eu mesmo. Aliás, só nas ilhas britânicas o absoluto nada consegue exalar beleza e magia assim, de graça. Sentei e esperei.
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Sim, um castelo. |
Fui muito bem recebido por ambos. Dois fofos. Sabina foi uma verdadeira lady, fazendo perguntas interessantes sobre nosso país, enquanto o Chris explicava um pouco da história do local com toda uma naturalidade. Não nego que havia um certo clima no ar. Você troca e-mails com uma pessoa do outro lado do atlântico por dois anos, conhece sua vizinhança via google street view e um belo dia, voilá, aparece lá. Você não sabe se considera a pessoa um conhecido ou um estranho completo. Eu tentei ser o mais educado e interessado possível, alternando entre as conversas e as fotos que eu podia tirar.
A casa deles era mágica. Uma típica casa galesa, apertadinha, aconchegante e rústica. Além da escada, que era apertada e linda, lembro de ver camas de gatos e de cachorros pelo chão, um alaúde, alguns instrumentos e panos pendurados no teto da cozinha. Aliás, a cozinha deles era de pedra e tinha uma vista de frente para uns morros verde-amarronzados, com algumas ovelhas. Por alguns segundos esqueci o porquê de estar ali... Até ser conduzido ao seu atelier, nos fundos da casa.
O local se tratava de um quartinho bem simples, empoeirado e extremamente humilde, mas só à primeira vista. Um olhar mais detalhista encontraria de cara um contrabaixo acústico ali, mais um alaúde acolá e vielas de roda novas e
(bem) antigas penduradas no teto, fora todos as ferramentas. Todas as vielas eram lindas, sem dúvida, mas eu só tive olhos para uma que estava casualmente em cima de uma mesa, como uma criança esperando os pais na porta da escola.
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Serious Business |
Pisei na sala e logo a vi. E eu sei que o Chris percebeu isso. Ainda assim, provavelmente por puro sarcasmo Galês ou apenas para não aparentar estar ali apenas para negócios, ele decidiu me mostrar cada um daqueles instrumentos. Não surtei. Ouvi tudo com o orgulho falso mais natural que já exercitei na vida. Ouvi histórias fascinantes, sobre quando ele foi abduzido pelo hurdy-gurdy há quase 30 anos, passando por um leilão épico em que ele adquiriu um instrumento do XIX (
feito por Gilbert Nigout, malz aew!) e chegando até hoje, dias de modesta popularidade como um luthier de instrumentos antigos altamente respeitado no Reino Unido.
- And this one...
- Yep, this one.
Lembro de dizer apenas umas duas vezes que ela era linda, me contendo para não parecer desesperado...
(imagina, né. Apenas despenquei da Ilha do Governador. Besteira!) E ele então gentilmente me deu algumas dicas técnicas, como retirar e lixar teclas que pudessem emperrar com a umidade. Isso ocorreu ao som do
Uma História do Choro, que dei a ele de presente, numa conversa sobre como nós, Sul-americanos, temos em nossa música baixos extremamente coloridos e interessantes (respect). Antes de minha primeira e única aula, vejam bem, Sabina nos interrompeu de forma muito bem-vinda com um pouco de chá de maçã da turquia (!) numa caneca de hurdy-gurdy (!!). Discutimos algumas questões técnicas sobre tangentes (zZz), almoçamos um cozido com uma de suas filhas e só então eu pude ter minha primeira experiência, de fato tocando, ou melhor, tentando tocar, minha viela. A primeira
tune que tentei tocar foi
Llef Harlech, do
Carreg Lafar, óbvio. E o engraçado é que eu filmei este momento histórico, mas a câmera ficou tão bem posicionada, mas tão bem....
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Que só vemos as mãos do Chris. |
Surreal. Eu não tive como tirar nem mesmo uma foto da casa deles, daquelas paredes ou daqueles instrumentos. Eu estava tão imerso naquele mundo que só consegui
atualizar o status do facebook começar a conceber a magia daquele dia no dia seguinte, ao acordar ao lado do meu case, em Dublin.
Cheguei debaixo de uma chuva bem chatinha e fui recebido efusivamente pelos meus companheiros de banda. Ainda muito tenso com o dia inconcebível que tive, mal conseguia tocar (diferente do Caio, que mal encostou na viela e me saiu com Asa Branca na minha cara). Saí à noite, totalmente agoniado, mas ao voltar, a perfeição: dormir com o gurdy na minha cama, do meu lado, como um sonho totalmente palpável.
O sonho havia se realizado.