Theorbo (na parte de cima) |
Ontem decidi literalmente cruzar a cidade para explorar o Musée Cité de La Musique. Foi uma visita absolutamente espontânea e não planejada, dica do Laurent num momento em que lamentávamos o fato de o museu dedicado à viela de roda, no interior, não existir mais.
Ver tanta coisa de perto foi fantástico. Minha vontade era ter chegado lá às 9:00 da manhã e ficar até o museu fechar, mas falta tempo. Ainda mais nesses últimos dias aqui.. Mas bem, por onde começar? O ambiente é magnífico, com instrumentos de diferentes épocas agrupados por datas e/ou propósitos diferentes. O audio-guide é de graça e a moça do guarda-volumes é muito prestativa e tagarela. De quebra, tem uma loja do grupo Harmonia Mundi lá dentro. Ou seja, tive um dia inesquecível e fiquei pobre.
Como eu tinha apenas uma tarde, passei meio que corrido por algumas coisas, como o último andar, dedicado à musica mais moderna, rock n'roll etc... Mas fiz questão de ficar bastante tempo no segundo andar, que é focado - a grosso modo - nos séculos XVII e XVIII. Me encantei ao ver instrumentos como o theorbo, o cravo (estes em diferentes tipos e tamanhos), o alaúde e a harpa. Eram tantos tipos de violões, bandolins e pianolas que eu quase me perdi.
Erhu em ação |
Quando atingi o andar em questão, entre uma explicação e outra do guia, peguei no ar uma nota em glissando seguida por palmas. Na hora pensei, pronto, um violinista. Preciso ver isso. Ledo engano. No fundo da sala havia um senhor (chinês) tocando um Erhu. Que som e que potência! O glissando que ele usa nas notas vai fundo na gente. Absurdo, de verdade.
Passado o furor causado pero Erhu, voltei pro início daquela galeria para ver com calma o que passou batido por mim. Daí me deparei com as musettes (gaitas de fole francesas, populares no século XVIII) e mal tive tempo de reparar em seus tecidos quando me deparei com ela, novinha como se tivesse sido feita ontem: uma viela de roda de Pierre Louvet.
Viela construída por Pierre Louvet - Paris 1740 |
Pierre Louvet (1709-1784) foi um dos maiores luthiers franceses ever. Fabricava instrumentos para a corte e para os músicos parisienses em seu tempo. Seus instrumentos, principalmente as vielas, que vocês podem ver aqui, servem há anos como modelos para luthiers contemporâneos do mundo inteiro. A minha viela, por exemplo, é baseada nela.
O que me deixou um pouco desapontado, entretanto, foi o fato de a viela estar lá como mais uma amostra de qualquer coisa. Sem desmerecer os outros instrumentos, claro. Eu entendo que é impossível cobrir a história TODA de todos os instrumentos existentes na França ao longo de sua antiga história. Mas por outro lado, estamos falando aqui de um instrumento que já tem pouco mais de um milênio de vida, que já foi extinto de vários países e beirou a extinção total algumas vezes, com exceção da França, onde sobreviveu apesar de suas idas e vindas. Enfim, dentro de toda sua trajetória, o foco que o museu escoleu dar ao instrumento se resume a um revival repentino que a viela teve durante o século XVIII. Até então, ela estava relegada aos músicos de rua, pedintes cegos e vagabundos moradores de rua. Foi na verdade um capricho da corte, uma ideia romantizada sobre o "retorno ao campo" que fez com que instrumentos como a viela de roda e o tamborim voltassem à moda - mesmo que por um tempo. Como um milagre, a plebeia é eleita princesa dos salões de dança e das luxuosas tardes campestres ao ar livre. E é esse momento específico da viela que encontramos nos vidros desse museu.
Jean-Nicolas Lambert (1708-1759) |
Nesse boom, outras formas do instrumento surgem, já que alguns luthiers experimentavam vielas com corpos de violões e alaúdes. Algumas das vielas que tive a oportunidade de ver, portanto, eram anônimas e estranhas (mas não menos fascinantes), com diferentes cores e tamanhos.
Viela anônima |
Aliás, o museu nos permite ver que no que diz respeito à construção de instrumentos e busca por sonoridades novas, os caras lá trás não estavam nada distantes de nós. A quantidade de instrumentos experimentais de séculos passados é gigantesca e impressionante. Além dos violinos bizarros (eu precisaria de um outro blog só para os violinos, então deixemos quieto), pude passar um tempo em frente a uma pequena galeria de instrumentos experimentais mecânicos, muitos deles utilizando manivelas - que foi, obviamente, o que me chamou a atenção.
Manivelas |
A grande maioria deles se resume a diferentes tipos de realejos. Os maiores de origem inglesa, os menores, franceses. A ideia dessas, digamos, caixinhas de música mais agudas, era imitar os sons dos pássaros; e aparentemente essa ideia veio da China. Muito interessante. Aliás, coincidentemente, a peça que o carinha do Erhu tocou se chamava "os pássaros".
Serrinette |
Eu com certeza teria me arrependido amargamente não tivesse feito essa visita e visto com meus próprios olhos esses instrumentos que presenciaram e reinaram seculos atrás, num momento que, datas à parte, é bem parecido com o que vivemos atualmente. A viela passa mais uma vez por um revival, dessa vez o mais potente em sua história. Uma injeção de adrenalina num corpo que está há centenas de anos adormecido.
Ser parte disso é bem legal. ;-)