quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

De Bourges para o Rio de Janeiro, vielisticamente.



Eu estava do outro lado do oceano, segurando minha viela no colo e não assimilando muito bem o que ouvia.

Ok. Hoje em dia essa história de cruzar o oceano não é mais um big deal pra ninguém, com exceção de alguns poucos pseudo-caipiras como eu. Mas eu estava do outro lado do oceano, longe de tudo que me cercou a vida inteira e situações assim tendem a tornar as coisas um pouco confusas. Era a saudade indo de encontro à vontade que me move a lugares tão extremos. Estar lá teve um impacto inesperado, bem maior do que eu imaginei.

Viela de roda na faixada de um prédio - Bourges
A história viva que brilhava diante dos meus olhos e atravessava meus ouvidos era tão impressionante e rica que eu esquecia que estava ouvindo uma língua na qual eu não sou fluente. Uma catedral de quase mil anos, restos de uma muralha que presenciaram romanos e gauleses em batalhas e ruelas mais velhas que tudo o que eu conheço. A palavra que estava por todos os lugares era óbvia: Tradição.  

Essa minha estadia na França serviu para eu ver que isso que nos alimenta musicalmente às vezes pode ser também uma verdadeira prisão. Corri da música erudita por conta deste peso. Busquei refúgio na musica folk irlandesa e, ouso dizer, infelizmente encontrei o mesmo tipo de discurso. Não devemos tocar isso ou aquilo porque não é parte da tradição. Não vibrar num concerto romântico? Loucura! Vibrar numa tune irlandesa? Segurar o arco assim ou assado? Limpar a resina do seu instrumento? Que amador... E por aí vai.

Meus dias no conservatório de Bourges me fizeram refletir um pouco sobre esse peso da tradição; Eu cheguei na França me sentindo um adolescente abusado que força uma barra para ser aceito num grupo e saí de lá sentindo que o francês (musicalmente falando) na verdade era eu e eles é que eram uns adolescentes bobos. O medo de ser rejeitado por me meter a besta e mexer num aspecto tão concreto da tradição deles, antes tão palpável, se esvaiu.

Eu estava ali, diante de um verdadeiro ícone em sua própria terra - onde ele fez história com seu instrumento – e estava, para minha surpresa, escutando tudo o que eu não esperava. Me foi dito que a tradição, se utilizada como refúgio e bíblia, tende a ser de certa forma burra e limitada, deixando as mais diversas e grandiosas possibilidades passarem. Eu estava ali ouvindo que eu, por não ser parte daquela história, por não carregar o peso daquela tradição, estava livre para fazer o que eu quisesse. Fiquei chocado. E as regras? E toda aquela pompa de manter a tradição e seguir à risca tudo o que todo mundo tem feito há séculos? Não era o caso aqui. O valor da tradição me foi passado, não tenham dúvida, mas como um meio e nunca como um fim. E eu, que me considerava tão novo, tão aberto, me peguei quase julgando a postura do meu professor. Incrível.

Música é linguagem e teoricamente devemos sempre focar numa língua específica para nos expressarmos bem. Esse conflito linguístico-musical define a minha trajetória enquanto músico. Sempre num dialeto entre o folk e o erutido, nunca 100% um ou outro, ter que escolher um lado sempre me incomodou muito. E agora posso assumir que a ilusão de liberdade dentro da música tradicional caiu parcialmente por terra por mim. A palavra já diz, certo? Tradicional.

Foto de um artigo sobre a Viellistic Orchestra
Essas palavras ditas pelo Laurent tiveram um grande impacto em mim, porque se eu pensava que a viela de roda, dentro de seu esquecimento e rejeição, estaria livre da mão pesada da tradição, me enganei feio. A tradição existe sim, concreta e empoeirada, em cima de mais de mil anos de história. Sufocando as diferentes formas de expressão que podem brotar de lados que estão sempre presos no infinito de seus próprios universos. E pior ainda, apesar da tradição existir e meu professor ser quem é, ela não estava sendo imposta.

Para mim foi bem estranho estar ali. Você passa tanto tempo assimilando uma cultura (ou a sua visão de uma cultura) que quando você se encontra assim, no meio do furacão, presenciando tudo e vivenciando as coisas diariamente, as coisas entram em uma perspectiva diferente e algum choque acontece. Algo em mim mudou para sempre.

Descobri que as pessoas não tendem a olhar para a viela de uma forma saudosista. Na verdade, ela é muitas vezes considerada um subinstrumento, não só literalmente no fim de uma escala de importância, mas entre duas tradições que, como em qualquer esfera musical, se dividem entre clássica e popular. Erudita e folclórica.

Ainda assim, meu amor pelo instrumento só cresceu. Horas apenas ouvindo Laurent tocar, vendo o que fazer e como fazer. Partindo da música sacra do século XII até o jazz africano, passando pela renascença, pela realeza francesa e pelos mendigos cegos de poucos séculos atrás. Tudo isso saindo das mãos de alguém que nasceu na tradição e, fugindo da mesma, encontrou mil outras e viu que no fim, fazer o que se deseja fazer é o melhor. A lição que ficou mais bem colocada em minha mente foi essa: as possibilidades existem e não devemos deixar a tradição nos atrapalhar. Não quando queremos nos expressar e sermos nós mesmos.

Talvez o meu amor pela viela de roda tenha crescido por eu ver que me sinto como ela, há tanto tempo às margens da sociedade por N razões. Talvez por ter sempre me sentido anacrônico, vivendo numa época errada. Acho que é bem por aí, por mais brega que soe. E todos nós que nos envolvemos com a rabeca de roda somos assim: anacrônicos. Pessoas que tocam não só um instrumento, mas uma máquina do tempo.

Meus dias em Bourges serviram para eu ver que a tradição existe, não importa para onde eu corra. A grande sacada, amigos, é que embora eu tenha a carta branca do anonimato do instrumento em meu país, eu acho que é fundamental ficarmos minimamente íntimos dela - a tal tradição - para depois a ignorarmos da forma que ela merece. Eu estou completamente perdido, sem saber que direção seguir com meu instrumento. As possibilidades são tantas, mas tantas, que no final tudo o que me resta de concreto é a minha viela e minha vontade de fazer música com ela.

A roda não para de rodar, independente da melodia que é tocada. 
E ficar perdido nunca foi tão gostoso. ;-)


quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Em Bourges II

Lidem com a epicness.

Interior da Catedral de Bourges
Bourges. A cidade onde o tempo parou. Se aqui no Brasil eu me sinto anacrônico por me sentir antigo a ponto de ultrapassar o conceito de brega ou retrô, lá eu me senti anacrônico por ser moderno de mais, novo de mais, em todos os sentidos. Ainda assim, há momentos em que eu desejo que o tempo tivesse parado para mim como parou para esta cidade tão mágica. 

Por exemplo, eu me lembro de uma época em que eu acordava cedinho aos sábados, feliz da vida por sair com um violino nas costas. Lembro das minhas primeiras aulas na escolinha de música do meu bairro e fico surpreso com a naturalidade e descontração que envolviam minhas manhãs. Não havia grandes cobranças ou mãos trêmulas na hora de tocar o que quer que fosse diante de meu professor. Não havia competição, gente escondendo fontes musicais ou querendo te ouvir para achar imperfeições. Sinto muita saudade dessa época porque lá atrás música era apenas música, completamente despida de todos os preconceitos que a famosa erudição e o falido bom senso artístico (?) nos enfiam goela abaixo.

É meio triste, mas a verdade é que tudo isso se perdeu em algum momento, quando anos mais tarde, num conservatório maior e de fato reconhecido, os concertos ficaram sérios e o peso da tradição erudita que o violino traz caiu sobre minhas costas. 

Esses dois primeiros dias em Bourges serviram para resgatar esse ar naïve do início do meu caminho musical. Acordar cedinho – mas feliz! – tomar meu café da manhã e partir para a escola de música foi um ritual magnífico, apesar do frio das manhãs da pequena cidade.  

Laurent, gentil como sempre, fez questão de me apresentar a alunos, professores e funcionários da escola. Todos foram muito solícitos e simpáticos, além, é claro, de me olharem como um E.T. por verem um brasileiro despencar pra lá por causa da viela de roda.

Esses dias foram cansativos, também. Me enganei se achei que as aulas se resumiriam a aprender tunes e ficar tocando o trompete o tempo inteiro. Laurent trabalha muito com nosso ouvido e com nossa visão. Eu passei algumas boas horas apenas ouvindo diferentes tipos de tunes, com diferentes ritmos. Olhando as suas mãos. Eu ouvi e ouvi MUITO, não só em casa antes e depois das aulas, mas durante as mesmas. O trabalho nos ouvidos vinha sem pressa para depois focarmos nas mãos esquerda e direita separada e repetidamente, para só então tentarmos juntar ambas numa mesma tune, trabalho este que pode ser desesperador. risos

O que eu achei engraçado é que nós tendemos a olhar para a mão direita como o verdadeiro problema da viela, por conta dos golpes de manivela. Contudo, de acordo com o tio Bitaud, é a mão esquerda que vai ditar se alguém é ou não um bom vielista. Segundo ele, é o dedilhado que nos faz acelerar, ralentar ou perder de vez o controle da mão direita. Isso foi bem esclarecedor para mim; e de fato os exercícios que fiz já tiveram um impacto considerável em ambas as minhas mãos. Dá-lhe escalas e arpejos... Mas tudo de uma forma bem tranquila e sem pressão. Ainda mais num ambiente como aquele.

Conservatório de Música e Dança - Bourges
O Conservatório de Música e Dança de Bourges é um lugar extremamente inspirador! Cercado por um pântano, um rio e paredes de vidro, a escola abriga quase mil alunos que partem de diferentes cidades para terem acesso ao ensino de instrumentos que vão do clarinete à viela de roda, espalhados por diferentes áreas como o jazz,  a música clássica e claro, a música tradicional (apesar de seu status - fofoca que guardo para o próximo post).

Enfim, não há, não há e NÃO HÁ ambiente mais estimulante para um pobre gringo brasileiro que veio buscar isso: a coisa verdadeira, os franceses vielistas da gema. Foi tudo fantástico, apesar do cansaço gerado por 7 horas quase consecutivas de viela, com direito a trompete, dezenas de tunes diferentes e muita conversa regada a chás e cafés.

Sim. É um rio.
Acho que eu estava meio que em choque o tempo todo, então focar 100% do tempo não foi tarefa fácil. Ainda mais que tudo ocorreu no bom e velho francês de Bourges - o que foi ótimo para treinar minhas habilidades na língua.

Bom, o saldo final da segunda semana foi mais que épico. Certamente, só os pequenos tours pela cidade e as refeições da Brigitte já faziam tudo valer a pena. Me faziam esquecer a quantidade hercúlea de partituras que me foi dada para "dar uma olhadinha" ao longo da semana seguinte e das 2 horas em que eu congelaria lentamente na conexão em Vierzon, de volta pra Paris.

A questão que se formava, por fim, era como eu seguiria sozinho após tanta orientação e informação. A viela de roda é tão diferente e ao mesmo dialoga abertamente com o universo do violino: de um lado, temos duas tradições conflitantes. Do outro, diferentes caminhos e atalhos secretos que podemos seguir - somos, no fim do dia, instrumentos basicamente melódicos com (uma falsa - falo disso depois) plena liberdade de expressão. Enquanto um está em tudo que é canto, o outro está há séculos adormecido, acordando só agora para encontrar seu lugar ao sol no cenário musical do século XXI. Ao mesmo tempo a viela, em toda sua excentricidade e liberdade, requer horas e horas de estudo minucioso de cada mão. A liberdade aqui serve para termos disciplina e mantermos o foco, sem nos perdemos no mar das possibilidades. Desta forma, o arco e a manivela se encaram e se reconhecem, mesmo que ambos finjam o contrário.

Esses dias serviram sim para colocar essas minhas duas ferramentas artísticas cara a cara, como num combate. O resultado? Um efeito estranho, como um espelho que nos exibe um reflexo bizarro mas desconfortavelmente parecido com nós mesmos. É.. Aquilo que eu via como uma dicotomia  tomou forma de soma. Uma equação a ponto de atingir um equilíbrio.

Podia ter escolhido a flauta, pensei eu com meu chá.
;-)