Eu estava do outro lado do
oceano, segurando minha viela no colo e não assimilando muito bem o que ouvia.
Ok. Hoje em dia essa história de
cruzar o oceano não é mais um big deal pra ninguém, com exceção de alguns poucos pseudo-caipiras como eu. Mas eu estava do outro
lado do oceano, longe de tudo que me cercou a vida inteira e situações assim
tendem a tornar as coisas um pouco confusas. Era a saudade indo de encontro à
vontade que me move a lugares tão extremos. Estar lá teve um impacto inesperado,
bem maior do que eu imaginei.
Viela de roda na faixada de um prédio - Bourges |
A história viva que brilhava
diante dos meus olhos e atravessava meus ouvidos era tão impressionante e rica
que eu esquecia que estava ouvindo uma língua na qual eu não sou fluente. Uma
catedral de quase mil anos, restos de uma muralha que presenciaram romanos e
gauleses em batalhas e ruelas mais velhas que tudo o que eu conheço. A palavra que estava por todos os lugares era óbvia: Tradição.
Essa minha estadia na França
serviu para eu ver que isso que nos alimenta musicalmente às vezes pode ser
também uma verdadeira prisão. Corri da música erudita por conta deste peso.
Busquei refúgio na musica folk
irlandesa e, ouso dizer, infelizmente encontrei o mesmo tipo de discurso. Não
devemos tocar isso ou aquilo porque não é parte da tradição. Não vibrar num concerto romântico? Loucura! Vibrar numa tune irlandesa? Segurar o arco assim ou
assado? Limpar a resina do seu instrumento? Que
amador... E por aí vai.
Meus dias no conservatório de
Bourges me fizeram refletir um pouco sobre esse peso da tradição; Eu cheguei na
França me sentindo um adolescente abusado que força uma barra para ser aceito
num grupo e saí de lá sentindo que o francês (musicalmente falando) na verdade era eu e eles é que eram uns adolescentes bobos. O medo de ser rejeitado por me meter a besta e mexer
num aspecto tão concreto da tradição deles, antes tão palpável, se esvaiu.
Eu estava ali, diante de um verdadeiro ícone
em sua própria terra - onde ele fez história com seu instrumento – e estava,
para minha surpresa, escutando tudo o que eu não esperava. Me foi dito que a tradição,
se utilizada como refúgio e bíblia, tende a ser de certa forma burra e
limitada, deixando as mais diversas e grandiosas possibilidades passarem. Eu
estava ali ouvindo que eu, por não ser parte daquela história, por não carregar
o peso daquela tradição, estava livre para fazer o que eu quisesse. Fiquei
chocado. E as regras? E toda aquela pompa de manter a tradição e seguir à risca tudo o que todo mundo tem feito há séculos? Não era o caso aqui. O valor da tradição me foi passado, não tenham dúvida, mas como um meio e nunca como um fim. E eu, que me considerava tão novo, tão aberto, me peguei quase julgando a postura do meu professor. Incrível.
Música é linguagem e teoricamente
devemos sempre focar numa língua específica para nos expressarmos bem. Esse
conflito linguístico-musical define a minha trajetória enquanto músico. Sempre
num dialeto entre o folk e o erutido, nunca 100% um ou outro, ter que escolher
um lado sempre me incomodou muito. E agora posso assumir que a ilusão de
liberdade dentro da música tradicional caiu parcialmente por terra por mim. A
palavra já diz, certo? Tradicional.
Foto de um artigo sobre a Viellistic Orchestra |
Para mim foi bem estranho estar
ali. Você passa tanto tempo assimilando uma cultura (ou a sua visão de uma cultura) que quando você se encontra assim, no
meio do furacão, presenciando tudo e vivenciando as coisas diariamente, as
coisas entram em uma perspectiva diferente e algum choque acontece. Algo em mim
mudou para sempre.
Descobri que as pessoas não
tendem a olhar para a viela de uma forma saudosista. Na verdade, ela é muitas
vezes considerada um subinstrumento,
não só literalmente no fim de uma escala de importância, mas entre duas
tradições que, como em qualquer esfera musical, se dividem entre clássica e
popular. Erudita e folclórica.
Ainda assim, meu amor pelo
instrumento só cresceu. Horas apenas ouvindo Laurent tocar, vendo o que fazer e
como fazer. Partindo da música sacra do século XII até o jazz africano,
passando pela renascença, pela realeza francesa e pelos mendigos cegos de
poucos séculos atrás. Tudo isso saindo das mãos de alguém que nasceu na
tradição e, fugindo da mesma, encontrou mil outras e viu que no fim, fazer o
que se deseja fazer é o melhor. A lição que ficou mais bem colocada em minha
mente foi essa: as possibilidades existem e não devemos deixar a tradição nos
atrapalhar. Não quando queremos nos expressar e sermos nós mesmos.
Talvez o meu amor pela viela de
roda tenha crescido por eu ver que me sinto como ela, há tanto tempo às margens da
sociedade por N razões. Talvez por ter sempre me sentido anacrônico,
vivendo numa época errada. Acho que é bem por aí, por mais brega que soe. E todos
nós que nos envolvemos com a rabeca de roda somos assim: anacrônicos. Pessoas
que tocam não só um instrumento, mas uma máquina do tempo.
Meus dias em Bourges serviram
para eu ver que a tradição existe, não importa para onde eu corra. A grande
sacada, amigos, é que embora eu tenha a carta branca do anonimato do
instrumento em meu país, eu acho que é fundamental ficarmos minimamente íntimos
dela - a tal tradição - para depois a ignorarmos da forma que ela merece. Eu
estou completamente perdido, sem saber que direção seguir com meu instrumento.
As possibilidades são tantas, mas tantas, que no final tudo o que me resta de
concreto é a minha viela e minha vontade de fazer música com ela.
A roda não para de rodar,
independente da melodia que é tocada.
E ficar perdido nunca foi tão gostoso. ;-)