Olha, se tem uma coisa com a qual eu não consigo/sei/quero lidar, essa coisa é perder apresentações de artistas que me interessam. Eu nunca tenho a chance de vê-los, a bem da verdade. Fui poucas vezes a apresentações que me interessavam, já que quando a chance aparece, devemos fazer de tudo para ouvir músicas e instrumentos importantes para nós. Esse ano todo o Dharma acumulado nesse sentido chegou, e artistas pelos quais espero a vida inteira vieram ao Brasil. Para minha tristeza, não se pode ter tudo; e eu devo dizer que estou triste demais por perder o grupo em questão, por conta do meu trabalho. Ok, confesso que nunca havia ouvido falar dos Musiciens de Saint-Julien, e quando parei para babar no cartaz acima, o fiz porque sabia que a Aliança Francesa me daria desconto no ingresso.
Pois bem, esse grupo passou pelo Brasil (uma apresentação no Rio e outra em São Paulo), e eu os vejo como um TESOURO que passou despercebido. Pagar 30 reais por um show desse nível é uma benção, então espero que tenha sido um sucesso. O repertório desse espetáculo específico é voltado para o cenário "pastoril" francês do século XVIII, ou seja, não tem como não ter viela de roda. A[i vai um pequeno vídeo sobre essa essemble tão linda.
Bem, mais que a "mera" presença da viela no espetáculo, o que me doeu mais em perder essa apresentação foi o fato de a vielista do grupo já fazer parte do ATUAL MOMENTO de minha trajetória vielística sem ter a menor ideia.
Explico: em janeiro, quando estava estudando com o Laurent lá em Bourges, me foi passada - no meio de um mundo de material - a partitura de uma peça escrita pela vielista em questão, Anne-Lise Foy, chamada Le Moulin des Deux Roues. A tune é maravilhosa, e serve como um desafiador exercício de arpejos cujo o macete até hoje não desvendei, ou seja, ainda me encontro desbravando a peça dela - e amando, de verdade.
Queria muito ter ido lá para pagar de fã e pedir para ela assinar a partitura, tenho certeza que teria sido uma experiência mágica, então deixo um pequeno vídeo deles aqui, para ilustrar minha amargura.
Hoje fui pego de surpresa por uma pequena menção de meu nome no facebook. Uma futura (e bem sucedida) vielista brasileira - a querida Nayane - me citou ao postar que seu nome finalmente está em uma lista de espera de um luthier. Antes de mais nada fiquei absolutamente feliz por ela. Que linda, essa sensação de está chegando. Na verdade, na verdade também fiquei lisonjeado com a menção, pois de certa forma já me sinto parte de sua história nessa estrada fascinante que é estudar a viela.
Eu digo fascinante porque estudar um instrumento não se trata apenas de toca-lo. Tocar é, sim, parte fundamental dessa aventura, mas não se trata apenas disso. Aprender um instrumento, seja ele qual for, é também lidar com toda a bagagem - a pesada história, muitas vezes obscura - que o instrumento carrega consigo. Lembro do meu último professor me dizendo que por eu ser brasileiro e, naturalmente, vir de uma cultura completamente diferente da dele, eu não "carregaria o peso da tradição nas minhas costas". Mentira, muito pelo contrário: é justamente por eu vir do outro lado do mundo que a tradição tem um grande impacto em mim. O que sinto é como se eu tivesse pegado o bonde (e diga-se de passagem, que bonde!) andando. A viela de roda é nada mais nada menos que 700 (SETECENTOS!!!) anos mais velha que o meu país. E ainda assim, só agora, está sendo descoberta no mundo todo - e principalmente aqui. Então me digam, por favor, COMO eu não vou me sentir atrasado para a festa? É impossível ignorar a tradição; ou melhor, as tradições que flutuam ao redor da viela e sua roda.
Bem, fato é que a viela chegou por aqui e chegou para ficar. Estamos aqui hoje eu e meus colegas para provar isso. E sim, sabemos que hoje em dia é muito mais fácil chegar ao instrumento; as fontes já são bastante numerosas; e por isso decidi começar uma série de postas tratando dessas novas vias, tão fortes para nós aqui desse lado do mundo, pessoas que nunca tiveram contato com o folclore musical de países como Alemanha, Galícia, Hungria e França.
O primeiro artista que vou homenagear nesssa série de posts é um dos maiores virtuosos da viela de roda, e toca uma viela de três teclados inventada pelo seu pai (Chris Eaton, um dos maiores luthiers do mundo, em minha opiniã). Pois bem, estamos falando de Nigel Eaton, que ficou conhecido não só por tocar ao lado do Jimmy Page, mas também por acompanhar diversas vezes um verdadeiro ícone da música dita "new age" (ODEIO este termo, mas o que posso fazer? É como o mundo a vê): Loreena McKennitt.
Como já contei antes, eu só vi uma viela em ação para valer em 2006, mesmo que seu som já soasse mais ou menos familiar para mim graças à musica galega. A bendita alma que puxou para este mundo? Nigel Eaton e seu maravilhoso hurdy-gurdy de três teclados construído por seu pai (Chris Eaton, top 3 em minha opinião), mandando ver ao lado de Loreena em Alhambra, precisamente no solo de Caravanserai.
Foi aí que tudo mudou. A bem da verdade, apesar de fazer uso de milhões de influências que atravessam sua música, Loreena é uma grande difusora da viela de roda, carregando debaixo do braço singles que chamaram a atenção do mundo inteiro devido a uma série de coisas, dentre as quais, sem dúvida alguma, a viela se encontra com seus solos e rifs maravilhosos. É o caso de eternos clássicos, The Mummers Dance e Marco Polo.
Nigel Eaton também já integrou o trio The Duellists, foi parte do duo Whirling Pope Joan e ainda foi parte do Blowzabella, um dos maiores grupos de música folk do planeta; Seus dois discos como artista solo (The Music of The Hurdy-Gurdy e Pandemonium) trazem tanto melodias tradicionais francês e inglesas quanto suas composições e até mesmo concertos barrocos para a viela. Sua forma de tocar é marcada por uma energia intensa, e seu domínio da mão direita é embasbacante admirável. Não importa se você é músico ou não, a música do Nigel merece ser ouvida por todos. E essa dupla (Nigel Eaton e Loreena McKennitt) terá sempre meu carinho por ter me permitido ser abduzido para o mundo da viela de roda.
Loreena McKennitt estará no Brasil em outubro nos dias 27 (Porto Alegre), 29 (Rio de Janeiro) e 30 e 31 (São Paulo), não com Nigel ao seu lado, mas sim com o Ben Grossman, outro grande vielista.
Para ouvir um pouco do que o Nigel anda aprontando: https://soundcloud.com/nigeleaton