sábado, 20 de fevereiro de 2016

Viela na novela (!)


Rio de Janeiro. Sexta-feira de carnaval. 14:15 pm. Para quem havia passado os últimos 18 dias rodando a Irlanda de cabo a rabo, eu até que estava me ambientando bem. Havia chegado há dois dias, e tudo havia sido maravilhoso, eu acabara de fazer as pazes com meu violino. No fundo, contudo, eu sabia muito bem que a manivela ia me puxar de volta com força.

Naquele dia a cidade toda já  estava a ponto de explodir e derreter-se em meio a blocos e desfiles e cerveja. Eu ali, debaixo daquele sol, com uma viela de roda nas costas e a demo de uma adaptação de Ondas do Mar de Vigo em meus ouvidos. Eu vou gravar uma música com a Fortuna. Um trabalho do Tim Rescala. Quem eu penso que sou, gente? Minha vontade era voltar no estúdio e falar oi, mas cês tem certeza de que é pra eu tocar, mesmo? O carnaval carioca de 2016 entrando em erupção e eu tão, tão longe. Da velha Península Ibérica aos cantos mais molhados do sertão brasileiro. Opará, nosso Velho Chico, correndo pela minha mente. Saí daquele prédio atônito, louco para mergulhar naquelas partituras que tomariam conta da minha vida pelos próximos 15 dias.

Tudo isso tem um quê de humor para mim porque lembro de uma época específica. Precisamente de uma noite em que levantei e timidamente saí de uma sala de concerto e me mandei, frustrado. Definitivamente, esse lance de trilha sonora não é para mim, pensei a caminho das barcas. Não me lembro direito em que ano isso aconteceu, mas sei que eu era mais um aluno de violino do Conservatório Brasileiro de Música. Aliás, um aluno bem chatinho de se ter. Vivia trocando Bach por tunes irlandesas; deixando grandes peças de lado para aprender canções de cego da galícia de ouvido, ou sonhando com o que eu realmente queria fazer. Aquela aula inaugural do curso de composição de trilhas para TV e cinema havia me deixado profundamente impressionado e completamente descrente de minhas habilidades enquanto músico. O primeiro dever de casa era compor e gravar uma trilha para um vídeo silencioso de uma bailarina em preto e branco. Quando que eu, que mal e porcamente fazia meu papel de mero violinista, teria capacidade de me envolver em algo do tipo? Que eu esperava algo além do violino, isso eu sempre soube - naquela época eu acho que estava ensaiando minhas primeiras pesquisas a respeito da viela de roda; e minha cabeça, sempre imersa no mundo trad, não viu muito sentido em seguir naquele curso. As aulas seriam ministradas por um tal de Tim Rescala, o que parecia ser um big deal. E o fato de eu ter que compor algo direcionado a um vídeo específico me assustou, mesmo porque:

1) Eu não toco piano.

2) Nem violão.

3) Eu não sei lidar com programas de gravação/mixagem. 

4) Mal sei lidar com uma direct box.

Fato é que esse curso botou Tim Rescala no meu mapa musical, e segui com a imagem daquele cara simpático e tranquilo que falava da absurda arte de compor trilhas sonoras como quem fala de amenidades e das coisas mais banais dessa vida. Um pouco de pesquisa e boom, seu devido respeito já fazia parte de mim como músico.  Ele lá, sendo foda e talentoso e gênio, eu aqui DE BOAS com meu instrumento de mendigo medieval.

Corta para o final do ano passado, eu terminando uma aula e vendo algumas ligações perdidas no celular e várias mensagens dos meninos da minha banda. Alguém estava atrás de mim por conta de uma gravação e eu não estava entendendo o alvoroço. Peguei apenas o número na conversa e liguei:

- Alô, quem fala?

- Hm... Você quer falar com quem?

- Não sei, me ligaram desse número. Aqui é o Rique.

- Ah, oi Rique, tudo bem? Aqui é Tim Rescala (caraleo, gesticulo eu do outro lado da linha). Minha esposa te ligou. É que estava precisando de uma viela de roda para a gravação da trilha de uma novela. Você tem interesse?




- Uhum, claro.

- Ok, mais pra frente entro em contato, me dá seu e-mail.

ETECETERA ETECETERA

Essa conversa foi tão surreal e tão aleatória que eu tive tempo apenas de surtar por precisos 5 minutos. Eu achei que ele apenas superaria essa história, porque afinal quem vai querer uma viela de roda para a novela das 21:00? Ou sei lá, essas pessoas geralmente já tem contatos, com certeza acabariam utilizando apenas um cello ou uma rabeca. Ou esqueceriam, já que eu de cara deixei claro (pela primeira vez quase me arrependo de programar uma viagem) que em janeiro estaria fora do Brasil... Enfim, deixei quieto e vivi minha vida até a fatídica sexta-feira de carnaval, há precisos 15 dias. E que 15 dias.

Foi muito estudo. Deixei de ir para o feriado dos amigos de SP e MG, em Indaiatuba; e mal saí durante o carnaval por aqui. Inclusive, no dia em que saí estudei o dia todo. Perturbei os colegas de apartamento do meu namorado, que não entendiam porque tanto tempo em notas tão longas, frases repetidas tantas vezes. Caí dentro mesmo, E AINDA ASSIM, faltou estudo. Um exemplo disso é um trecho em que eu toco "dó-ré-mi, ré-ré dó...", que de última hora passou a pertencer ao Cello. Ao ver o Marcus de Oliveira tocar essas três notas, sério... Fiquei sem ar. Que interpretação. Que magia, naquele som. Quis sair correndo! Estava perfeito. Digo, a parte dos outros músicos estava perfeito.

Acho o ambiente de estúdio complicado, porque tendo ao perfeccionismo, de certa forma. Nunca fico satisfeito. Com pessoas que não conheço, então, tudo fica mais tenso para quem é tímido. E estúdio com pessoas do calibre dessas que passaram o dia comigo hoje, então... Sério. Too much, too soon. Passei o dia inteiro em outra frequência, mas uma frequência muito boa. De quem está realizando um sonho.

Hoje foi um dia muito, mas muito especial. Um verdadeiro marco em minha vida musical. Gravei quatro coisas: Ondas do Opará, a adaptação que o Tim fez para Ondas do mar de Vigo; e pequenas frases para outras peças, uma delas exigindo improviso. Sério. Um dia você está em casa trocando algodão das cordas de seu instrumento obscuro e renegado, no outro você está num estúdio maravilhoso tendo que improvisar na frente do Tim Rescala para uma música da novela das 21h00. Sei lá, cara. Apenas sei lá. Agradeço eternamente à Virgínia, que gentilmente me indicou ao Tim. Agradeço ao Tim, lógico, pelo voto de confiança e paciência comigo nas horas de gravar pequenas frases. E pela carona providencial. E agradeço aos lindos músicos que tocaram ao meu lado: Fortuna, Marcus e Davi, com suas mil flautas mágicas. Vocês são maravilhosos. Ponto.

Fortuna, que dispensa  comentários;
 e Marcus de Oliveira, mago do cello.
Poder fazer parte da trilha sonora dessa história é uma honra. E o timing foi perfeito: voltei da Irlanda com sede da nossa terra e dos nossos sons, isso aqui foi a chave dessa porta. É um novo capítulo que se inicia na minha história com esse instrumento fantástico. E eu espero que vocês possam reconhecer meu Sieg nas cenas em que ele soar; e que essas canções tragam sorrisos aos rostos de vocês.




Rique

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