quarta-feira, 20 de junho de 2012

A Hora do Pesadelo: teclas emperradas



Se há algo que eu aprendi nesses poucos meses em que tenho estudado viela de roda, é que instrumento mais fresco está para nascer sons estranhos vivem rolando quando estamos tocando. Além das cordas, algumas variáveis com as quais temos que fazer malabarismo afetam o som diretamente, então precisamos estar atentos a mil coisas antes, durante e depois de tocar. Primeiramente, temos o algodão que envolve as cordas (mais sobre isso depois), mas não podemos deixar de lado a resina que passamos na roda (líquida ou sólida - como a dos arcos dos violinistas) e muito menos um fator que tendemos a ignorar: a madeira.

A viela é madeira pura, praticamente. Sendo assim, ela está inevitavelmente vulnerável às mudanças de clima, temperatura e umidade. Esse era um dos meus maiores medos quando trouxe ela de fora do Brasil. Imaginem só, deixar o outono galês, enfrentar mudanças de pressão devido aos vôos e ainda parar no Brasil, em pleno verão carioca. Complicado... Mas ainda assim, sobrevivi, e a viela também, que se comportou muito bem até o verão começar a se esvair. (sendo que eu sempre - SEMPRE - soube que mais cedo ou mais tarde a umidade ia voltar e me dar um belo chute no traseiro. Pois é, esse dia foi hoje.)

Mas não posso reclamar porque fui devidamente avisado a respeito do efeito da umidade na viela, principalmente no que diz respeito às teclas. Entretanto, antes de qualquer coisa, tenhamos em mente que o ato de tocar uma viela exige que empurremos a teclas para cima; e elas, por sua vez, voltem aos seus lugares devido seguindo a gravidade, sem esforço algum. Por conta disso, elas precisam estar soltas e leves em seus espaços, deslizando mesmo, de modo que, visto "de cima", na posição de tocar, a caixa de teclas fique assim:


Até aí, tranquilo, eu imagino. Essa visão inclusive nos auxilia no início da prática, já que podemos ver que teclas estamos acionando e como elas retornam às suas posições de origem.

Contudo, uma vez que a umidade entra em ação, as alterações nessa maciez das teclas é palpável, então é comum que algumas teclas passem a emperrar, levando um tempinho maior para retornarem às suas posições. Quando isso acontece, nossa primeira reação é praticar todo nosso repertório de palavrões ficarmos tensos, preocupados e o pior: sem saber como proceder.

Pois bem, a primeira coisa a se fazer é manter a calma. Vielas são instrumentos temperamentais e extremamente sensíveis a qualquer tipo de mudança, então a situação é natural e previsível.

Passado o pânico, você vai precisar de poucos itens: duas lixas para madeira (uma grossa e uma mais fina, para acabamento) e um lápis 6B (ou grafite em pó).

Uma vez que a tecla problemática for localizada, nós abrimos a caixa de teclas e marcamos com um lápis a posição de suas tangentes. Isso é estritamente necessário, já que vamos retirar a tecla e tratá-la (sim, ouço seus gritos daqui e sinto muito) e colocá-la de volta. Certifique-se de que as tangentes, uma vez fora da caixa, permaneçam na mesma disposição, ou seja, não confunda aquelas que pertencem à primeira fileira, com as da segunda. Cada uma deve voltar ao seu lugar.

O importante é manter a calma e saber o que está fazendo. As teclas são simples e geralmente escuras, então preste muita atenção para não apagar as marcas das tangentes, pois são elas que te guiarão na hora de botar tudo de volta em seu lugar. Também redobre a atenção na hora de retirar a tecla. Com muito cuidado, puxe a tecla aos poucos, já que muitas delas são muito próximas umas das outras e qualquer movimento brusco pode alterar a configuração de uma tecla vizinha.

Com a tecla em mãos, o que devemos fazer é procurar por partes mais brilhosas em sua superfície. São elas que estão em contato maior com a caixa de teclas, fazendo com que a tecla emperre no momento de voltar à sua posição. Estes pontos mais lustrosos podem estar nos lados e/ou nas partes de cima e de baixo. Pode ser também de que você localize apenas um ou dois desses pontos. Isso vai depender de muitas coisas, então nesse momento você só tem que localizar o "brilho" extra, como na tecla que tirei hoje e que você vê neste post.

Agora sim o trabalho começa, passamos a lixa mais fina aos poucos, depois passamos a mais grossa, também com calma, até a madeira voltar a ficar mais fosca. Faça isso de forma homogênea, com a lateral da ponta do lápis, e com cautela para não danificar o corpo da tecla. Uma vez que o brilho tenha ido embora, podemos aplicar o grafite nestas mesmas partes e também nas outras. Ou seja, cobrimos com grafite as partes que ficam mais em contato com a caixa de teclas. Isso deve deixar a tecla novamente deslizando sem problemas através da caixa. Depois é só colocar a (s) tecla (s) de volta na caixa, aparafusar as tangentes de acordo com as marcações feitas e voilá: seu gurdy está de volta. =)

É claro que estes passos são aconselháveis para teclas que não estão emperrando tanto. Algumas vezes elas podem ficar realmente presas, aí o melhor a se fazer é pegar um pequeno ... erm... raspador de madeira? E tirar muito (mas muito!) POUCO da área mais lustrosa da tecla. Essa foi a forma que o querido e inesquecível Chris Allen me ensinou, mas se mostrou necessária apenas em uma das minhas teclas, e uma que eu mal uso, que é a penúltima. Nas outras duas teclas em que precisei trabalhar, esses passos com a utilização da lixa (sugestão do grande Augusto Ornellas) foram mais do que úteis, me deixando bem satisfeito.

E é isso, boa sorte com suas teclas e logo estou de volta para tratar do pesadelo algodão que utilizamos em nossas cordas.

;-) See ya,

Rique

terça-feira, 12 de junho de 2012

A Saga da Viela V - Brazil Celtic Festival

Como lidar?
Na Irlanda nós precisaríamos fazer algumas aulas em nossos instrumentos; e também teríamos que visitar sessíuns tradicionais, alugar um carro e fazer uma road trip pelo país. Tudo isso era abordado da forma mais natural possível pelo Davi, bodhranai do Café Irlanda, que vivia falando coisas do gênero antes de qualquer passeio estar sequer programada. Eu só ria e pensava nossa, que sonho que seria viver isso. E ele afirmava com toda certeza do mundo: nós vamos à Irlanda ainda esse ano

Tudo começou por causa de um festival chamado Brazil Celtic Festival, que ocorreria na Bahia e do qual ouvimos falar através de uma amiga. Alguns artistas irlandeses viriam a Salvador para alguns shows enquanto artistas daqui iriam para lá seguindo a mesma ideia. A princípio, nosso intuito era apoiar o projeto de todas as formas possíveis (realmente acredito nesse espírito de músicos folk brasileiros se ajudando. Nós precisamos desse tipo de companheirismo, já que somos tão poucos), então apenas ajudaríamos a procurar algum tipo de patrocínio e tentar trazer o evento também ao Rio de Janeiro, o que infelizmente não ocorreu devido à indisponibilidade de espaços e à falta de tempo, já que estava um tanto em cima

De qualquer forma,  como uma forma de agradecimento e apoio, os produtores nos convidaram oficialmente (havia inclusive a carta de um parlamentar irlandês que apoiava o evento) a participar da etapa internacional do festival, em Dublin. Obviamente, nem tudo seria por conta deles, o que inevitavelmente implicaria em desembolsarmos alguma grana - ainda mais com tantos planos como aulas e road trips

Eu realmente não achei que aquilo fosse possível. Antes de qualquer coisa, eu ainda não havia recebido o resto do dinheiro necessário para uma viagem internacional. Além disso, eu havia acabado de conseguir um bom emprego, novinho em folha e já teria que pedir pelo menos uma semana de faltas para conseguir realizar esse sonho. Para a felicidade geral do Café Irlanda, o festival coincidiria com um feriado prolongado aqui no Brasil - de exatamente uma semana - fazendo com que no fim das contas eu só perdesse dois ou três dias de trabalho. Só isso, aliado aos convites, foi suficiente para Kevin e Davi já comprarem suas passagens. A coisa, entretanto, se concretizou quando todas as pessoas que poderiam me substituir no trabalho concordaram (anjos!) em me ajudar. Era isso: substituições no gatilho, convite para o festival, passaporte tirado desde 2009 (rs), cartão de crédito, Davi-cabeça-dura e.... Voilá: um dia antes do meu aniversário minhas passagens para a Irlanda estava compradas. Um misto de coisas girando em minha mente; e não pensem que tudo estava resolvido. A única coisa que faltava era justamente o dinheiro para meu hurdy-gurdy, e era isso que gerava uma certa tensão que brincava com o conceito de pedra no sapato.

Alguns dias ainda se passaram até meu coração pseudo-se-acalmar. Tudo já estava pronto: malas, documentos, reservas em albergues (para os dias que não fossem o do festival), aluguel do carro e... Passagens. Muitas dessas coisas foram acertadas com a banda toda junta, em dias de ensaio. Nunca esqueço do dia em as passagens para Gales foram compradas - antes mesmo de eu ter o dinheiro para o gurdy em si. Eu não sabia como tudo se resolveria, mas tinha certeza - de verdade, com fé mesmo - que aquela viela seria minha. Me segurei nesse pensamento com uma força que eu nem sabia que tinha, até que recebi, 15 dia antes de embarcar, o tão esperado dinheiro.

Minha viela estava ali, em cima da cama.

Dentro de um envelope.



domingo, 3 de junho de 2012

No Brasil, pero no Mucho II: Tekerölant tocando repertório de rabeca... por um argentino.


Antes de seguir para o último homem da imensa lista de vielistas brasileiros da atualidade, acho válido voltarmos nossa atenção àqueles que, apesar de não serem Brasileiros, estiveram em nossas terras e divulgaram de uma forma ou de outra nosso amado instrumento.

O primeiro deles (e eu digo primeiro aqui em quase todos os sentidos imagináveis) foi o argentino Pablo Lerner. Agora, se eu achava que ser brasileiro e tocar música tradicional irlandesa ou a música de alguns países europeus já era meio inusitado, imagine ser argentino, tocar uma viela húngara e trabalhar na música específica do nordeste brasileiro? Pois é.

Antes de mais nada, é válido esclarecer que o instrumento do Pablo é um tekerölant. Embora essencialmente um hurdy-gurdy como qualquer outro, o tekerö (húngaro para... alaúde rotativo?!) possui suas particularidades. Basicamente, a sua roda é menor - o que influencia diretamente a performance de peças mais lentas; e suas teclas, que existem em menor número e ficam numa caixa de teclas bem maior que as comumente vistas em vielas, de modo que ao serem acionadas as mesmas não saem do outro lado da caixa (o que geralmente nos ajuda muito no início da prática). O tekerö usado por Pablo foi construído por um dos principais construtores do instrumento na Hungria, Balazs Nagy.
Bem, morando na Hungria (onde estudou viela), Pablo, que me disse em primeiríssima mão que está terminando um método para tocar música nordestina na viela de roda (!), recentemente respondeu a algumas perguntas de forma muito solícita. Sobre sua história, ele fala com toda a naturalidade do mundo que já fez 33 viagens ao nosso país, onde também estudou música; e complementa que "sempre gostou do Brasil e da Hungria", simples assim, como quem diz gostar de queijo e abacaxi. Sua vinda ao Brasil, há alguns anos, ocorreu devido à Segunda Mostra de Música Antiga de Araripe, ocasião que possibilitou apresentações em locais como sesc e BNB Juazeiro do Norte. 

Seu trabalho tem como objetivo explorar a música da rabeca na viela de roda (e que vergonha, hein, Brasil. Foi necessário um argentino tomar esta iniciativa! =P), objetivo este alcançado de forma muito feliz, em parte graças à sua parceria com o multi-instrumentista e pesquisador de música para a rabeca, Di Freitas.

Você pode conferir um pouco mais deste magnífico projeto aqui.

É ou não é lindo?

;-)