A Roda da Fortuna, do Hortus Deliciarum (Garden of Delights), compilado por Herrad de Landsberg. Século XII. |
A ideia de roda, na música, é tão forte quanto a música em si. Início-meio-fim fazem parte de um percurso que, aliado às partituras, nos dão um ar de linha reta. Contudo, se pensarmos nas cantigas de roda, já sentimos um gostinho do que estou tentando expressar. Cirandas são fruto de um ponto sensível em que a música e a dança se tocam fisicamente de uma forma um pouco mais clara. As danças e os cantos indígenas de toda e qualquer parte do Globo, o gesto de rodar ou andar em círculos enquanto uma melodia - geralmente modal e relativamente simples - é entoada, nos dizem mais do que imaginamos: pensar em música é trabalhar com círculos e em círculos.
Círculo das Quintas |
O círculo é inerente ao ser humano por uma série de razões. É algo tão simples e tão arraigado em nossas mentes que nem nos damos conta deste fato. Não precisamos pensar sobre isso, mas estamos falando de uma das figuras geométricas mais antigas (se não A mais antiga) na história do Homem. Vemos círculos em tudo que nos circunda (no pun intended) desde sempre. É algo sagrado para nossa espécie. Talvez mais sagrado que a música em si, já que provavelmente veio antes dela.
Me parece que a roda (invenção que revolucionou tudo o que existe, para o bem ou para o mal) é uma das melhores expressões desta agradável forma geométrica. Se há uma roda, há uma utilidade. Há algo a mais. Daí o ponto central deste post: a roda da viela. Seu coração. Aquilo que precisamos manter em movimento para que a música seja executada. Minha ideia aqui é traçar um paralelo entre a roda do instrumento e algumas outras rodas (menos as dos carros, pois estes não me agradam ;-)).
A própria imagem que abre o post, como podem ver, literalmente joga em nossas faces o que poderia ser um pseudo-esqueleto de uma viela. Ou pelo menos de seus principais órgãos. É claro que a imagem não tem nada a ver com o instrumento em si. Ainda assim, vejam bem, é inevitável (ao menos para o ser que vos escreve) olha-la e deixar de fazer tal associação. Me parece que isso é algo comum entre vielistas: vemos rodas e manivelas onde muitas vezes nem mesmo suas sombras existem. Antes mesmo de tocar o instrumento, se eu não tivesse nada mais produtivo para fazer e visse uma maçaneta, lá estava eu gerando constrangimento. De qualquer forma, o interessante da imagem em questão é que, de acordo com o que li, ela precede em séculos a poderosa (e apaixonante) imagem de uma outra roda fundamental em nossas vidas: a roda da fortuna.
No tarô, a roda da fortuna nos traduz a aleatoriedade da vida em incontáveis níveis. Além de ir de encontro à máxima hermética que nos diz que assim como é em cima, é embaixo, ela dialoga com a ideia das possibilidades que a vida nos oferece, seja em relação ao poder (material, político, pessoal...), seja em relação às emoções ou às pessoas. A roda da fortuna é o Karma. Existe para nos lembrar que nós vamos e voltamos e vamos novamente. Tudo, na verdade - de uma foma ou de outra - vai e volta. Intacto, diferente, ao contrário, invertido... O "acaso" (ou destino) é que manda. Me soa bem importante.
Na música, "ouvimos" as rodas na música que "vem do oriente", a muito grosso modo, já que não estou fazendo justiça à riqueza do pouco que conheço sobre o assunto. A roda aqui é metafórica. O fato é que suas estruturas circulares rodam, giram... Sobem. A música de algumas regiões do oriente se repete de forma hipnotizante, nos fazendo subir numa espécie de espiral (poderíamos escrever vidas sobre espirais, mas ok, eu supero) para atingirmos algum nível de consciência específico.
O mesmo pode ser dito da música irlandesa. Feita na maioria das vezes para a dança (e ironicamente para square dances ou quadrilhas), a música da Ilha Esmeralda às vezes supera a intenção de atender aos dançarinos e pode se transformar no ato de tocar pelo puro prazer físico de tocar. Novamente, estamos falando repetições de estruturas melódicas modais e relativamente simples que se repetem numa forma que pode ser desagradável a novos ouvintes.
Mas o ato de ouvir, na maioria das vezes, não está atrelado ao ato de ver. E a roda na viela é isso: visão e audição em sintonia perfeita. E a diferença está na roda. Com exceção do realejo, são raros (e muitas vezes experimentais) os instrumentos que utilizam uma roda mais ou menos da mesma forma que a viela.
Eu ousaria dizer que apesar de seu formato insólito, é a roda (com sua manivela, é claro), dentre tudo na viela, que prende todos os olhos que a enxergam pela primeira vez. Há uma simplicidade pueril no ato de apenas girar uma roda - algo mágico, mesmo - que nos encanta. Seja a delicada imagem de uma caixinha de música ou a deliciosamente óbvia associação com o realejo, as imagens provocadas consciente ou inconscientemente pela roda são muitas e são sim, sem dúvida, maravilhosas.
Fascínio circular e brutal.
(Deixo aqui um abraço especial ao Augusto Ornellas - vielista #1 neste país :-) - por gentilmente me ajudar com alguns dos videos aqui postados.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário