quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Em Bourges II

Lidem com a epicness.

Interior da Catedral de Bourges
Bourges. A cidade onde o tempo parou. Se aqui no Brasil eu me sinto anacrônico por me sentir antigo a ponto de ultrapassar o conceito de brega ou retrô, lá eu me senti anacrônico por ser moderno de mais, novo de mais, em todos os sentidos. Ainda assim, há momentos em que eu desejo que o tempo tivesse parado para mim como parou para esta cidade tão mágica. 

Por exemplo, eu me lembro de uma época em que eu acordava cedinho aos sábados, feliz da vida por sair com um violino nas costas. Lembro das minhas primeiras aulas na escolinha de música do meu bairro e fico surpreso com a naturalidade e descontração que envolviam minhas manhãs. Não havia grandes cobranças ou mãos trêmulas na hora de tocar o que quer que fosse diante de meu professor. Não havia competição, gente escondendo fontes musicais ou querendo te ouvir para achar imperfeições. Sinto muita saudade dessa época porque lá atrás música era apenas música, completamente despida de todos os preconceitos que a famosa erudição e o falido bom senso artístico (?) nos enfiam goela abaixo.

É meio triste, mas a verdade é que tudo isso se perdeu em algum momento, quando anos mais tarde, num conservatório maior e de fato reconhecido, os concertos ficaram sérios e o peso da tradição erudita que o violino traz caiu sobre minhas costas. 

Esses dois primeiros dias em Bourges serviram para resgatar esse ar naïve do início do meu caminho musical. Acordar cedinho – mas feliz! – tomar meu café da manhã e partir para a escola de música foi um ritual magnífico, apesar do frio das manhãs da pequena cidade.  

Laurent, gentil como sempre, fez questão de me apresentar a alunos, professores e funcionários da escola. Todos foram muito solícitos e simpáticos, além, é claro, de me olharem como um E.T. por verem um brasileiro despencar pra lá por causa da viela de roda.

Esses dias foram cansativos, também. Me enganei se achei que as aulas se resumiriam a aprender tunes e ficar tocando o trompete o tempo inteiro. Laurent trabalha muito com nosso ouvido e com nossa visão. Eu passei algumas boas horas apenas ouvindo diferentes tipos de tunes, com diferentes ritmos. Olhando as suas mãos. Eu ouvi e ouvi MUITO, não só em casa antes e depois das aulas, mas durante as mesmas. O trabalho nos ouvidos vinha sem pressa para depois focarmos nas mãos esquerda e direita separada e repetidamente, para só então tentarmos juntar ambas numa mesma tune, trabalho este que pode ser desesperador. risos

O que eu achei engraçado é que nós tendemos a olhar para a mão direita como o verdadeiro problema da viela, por conta dos golpes de manivela. Contudo, de acordo com o tio Bitaud, é a mão esquerda que vai ditar se alguém é ou não um bom vielista. Segundo ele, é o dedilhado que nos faz acelerar, ralentar ou perder de vez o controle da mão direita. Isso foi bem esclarecedor para mim; e de fato os exercícios que fiz já tiveram um impacto considerável em ambas as minhas mãos. Dá-lhe escalas e arpejos... Mas tudo de uma forma bem tranquila e sem pressão. Ainda mais num ambiente como aquele.

Conservatório de Música e Dança - Bourges
O Conservatório de Música e Dança de Bourges é um lugar extremamente inspirador! Cercado por um pântano, um rio e paredes de vidro, a escola abriga quase mil alunos que partem de diferentes cidades para terem acesso ao ensino de instrumentos que vão do clarinete à viela de roda, espalhados por diferentes áreas como o jazz,  a música clássica e claro, a música tradicional (apesar de seu status - fofoca que guardo para o próximo post).

Enfim, não há, não há e NÃO HÁ ambiente mais estimulante para um pobre gringo brasileiro que veio buscar isso: a coisa verdadeira, os franceses vielistas da gema. Foi tudo fantástico, apesar do cansaço gerado por 7 horas quase consecutivas de viela, com direito a trompete, dezenas de tunes diferentes e muita conversa regada a chás e cafés.

Sim. É um rio.
Acho que eu estava meio que em choque o tempo todo, então focar 100% do tempo não foi tarefa fácil. Ainda mais que tudo ocorreu no bom e velho francês de Bourges - o que foi ótimo para treinar minhas habilidades na língua.

Bom, o saldo final da segunda semana foi mais que épico. Certamente, só os pequenos tours pela cidade e as refeições da Brigitte já faziam tudo valer a pena. Me faziam esquecer a quantidade hercúlea de partituras que me foi dada para "dar uma olhadinha" ao longo da semana seguinte e das 2 horas em que eu congelaria lentamente na conexão em Vierzon, de volta pra Paris.

A questão que se formava, por fim, era como eu seguiria sozinho após tanta orientação e informação. A viela de roda é tão diferente e ao mesmo dialoga abertamente com o universo do violino: de um lado, temos duas tradições conflitantes. Do outro, diferentes caminhos e atalhos secretos que podemos seguir - somos, no fim do dia, instrumentos basicamente melódicos com (uma falsa - falo disso depois) plena liberdade de expressão. Enquanto um está em tudo que é canto, o outro está há séculos adormecido, acordando só agora para encontrar seu lugar ao sol no cenário musical do século XXI. Ao mesmo tempo a viela, em toda sua excentricidade e liberdade, requer horas e horas de estudo minucioso de cada mão. A liberdade aqui serve para termos disciplina e mantermos o foco, sem nos perdemos no mar das possibilidades. Desta forma, o arco e a manivela se encaram e se reconhecem, mesmo que ambos finjam o contrário.

Esses dias serviram sim para colocar essas minhas duas ferramentas artísticas cara a cara, como num combate. O resultado? Um efeito estranho, como um espelho que nos exibe um reflexo bizarro mas desconfortavelmente parecido com nós mesmos. É.. Aquilo que eu via como uma dicotomia  tomou forma de soma. Uma equação a ponto de atingir um equilíbrio.

Podia ter escolhido a flauta, pensei eu com meu chá.
;-)


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