segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A viela de roda no imaginário popular



Daí que não fui trabalhar hoje. Febre que não sái de mim. 

Na esperança de me fazer um pouco útil e na delícia que é tratar desse assunto com vocês, resolvi compartilhar um pouco do que tenho lido sobre nosso amado instrumento. Estou lendo um livro que tenho há mais de um ano mas nunca tinha tomado coragem de ler porque está em francês. Pois bem, semestre passado precisamos escolher um livro para fazer uma apresentação oral no curso de francês e voilà, tomei coragem e comecei a enfrentar a fera. E que fera. O livro em questão é "La vielle à roue dans la musique baroque française" e eu estou boquiaberto com o mundo de informações e curiosidades que esse livro traz. Se você toca viela de roda, saiba: vielistas deveriam falar francês só para ler esse livro.

Se trata na verdade de uma tese de doutorado escrita por Paul Fustier, que tenta explicar o porquê de, no curto período que vai 1725 a 1765 a viela de roda sair das ruas e passar a ocupar um lugar de prestígio dentro da corte francesa. Toda a questão do livro gira em torno da viela de roda ter sido um instrumento-símbolo de uma vida campestre idealizada e romatizada pela corte, uma ideia inspirada no mito da Arcádia; e uma tendência que acabou gerando um certo modismo vazio e até mesmo fútil. O livro é brutalmente enorme, porque ele trata de absolutamente TUDO relacionado à viela, o pensamento da época em relação ao instrumento, sua origem, o impacto que essa "era dourada" causa nos tipos de músicos que encontramos, nos luthiers, nas obras etc 

Eu terminei de ler semana passada um capítulo que tenta explicar o porque da associação entre vielas de roda e mendigos (em sua maioria cegos); e eu adoraria falar disso aqui em algum momento, não duvidem. Porém, o capítulo que comecei a ler essa semana me parece mais interessante de forma geral, já que trata da atração/estranheza que o instrumento gerava nas pessoas naquela época, coisa que até hoje é uma realidade. Aliás, realidade da qual eu e você, se estiver lendo isso, somos vítimas. =)

Deixo aqui uma tradução livre da introdução desse capítulo. Foi feita quase às pressas e as figuras que acompanham o texto foram gooogladas por mim, sendo as únicas que encontrei. Gostaria de poder ter acesso a mais imagens, mas realmente são coisas muito específicas. No mais, as danças macabras às quais o texto faz alusão são painéis ou quadros (às vezes afrescos) retratando a morte dançando com uma série de diferentes personagens da sociedade medieval. Aparentemente essas danças tinham como intuito retratar a igualdade de todos perante a morte. Algumas obras que são citadas ficam boiando para nós, já que: 1) minha tradução não é profissional e eu me confundi na sintaxe 2) não existem imagens online de tais obras.

Enfim, eis o texto. Espero que curtam. =)

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Capítulo 6
A infiltração imaginária
6.1 Um instrumento misterioso para quem o vê ou escuta

Aquilo de misterioso que é associado ao personagem do mendigo cego poderia muito bem entrar em ressonância com certas características da viela de roda bem suscetíveis a produzir uma impressão de inquietante estranheza, segundo a expressão de Freud que nós já citamos.

Estranho objeto que frequentemente incorpora a forma de um navio a velas (as vielas em formato de alaúde), que é um instrumento de teclas como o cravo, com a diferença de ser quase um instrumento de arco como o violino - ainda que a madeira do arco não tenha crinas e entre diretamente em contato com as cordas -  e que não se trate de um arco propriamente dito, já que é uma roda. E finalmente, cheio de contradições, ainda é utilizado como instrumento de percussão. Entendemos que aquele que o vê ou escuta é de primeira intrigado e sempre desejará saber <<como funciona>>, como se fosse decifrar algum tipo de mistério inquietante e atraente.

Este instrumento também é estranho porque vem do universo medieval do modalismo e é utilizado, no período barroco, para tocar a música tonal, ainda que os bordões tentassem impossibilitar completa ou parcialmente os tons, gerando alguma dissonância.

A roda é um arco. Esta é, então, circular como a representação de uma volta sem fim. Eliade à enxergará como a figuração de um tempo cíclico, anti-histórico, aquele das civilizações do eterno retorno.
A parte que nos interessa do Jardim das Delícias, de Bosch. 

Musicalmente, a roda fará com que o som não cesse jamais, e que o silêncio seja impossível. De fato, parar a roda seria parar os bordões; produzindo então um vazio brutal, um desaparecimento de um espaço musical, uma ausência e não um silêncio. O vielista não saberia se conter, a menos que ele de fato terminasse <de tocar>. Veremos que a viela pode despertar o atraente e assombroso dentro do seu movimento sem fim; esse movimento circular que outras culturas utilizam devido a seu efeito hipnotizante.

Eu diria que essa é a do Soldan, mas também podeira ser a que se encontra em Sion.
O site realmente não ajudava e eu fiquei sem saber. A ideia, porém, é essa.
A iconografia nos confirma que a viela de roda podia fascinar por seu mistério. Sonhamos com a utilização que Jérôme Bosch faz do instrumento na sua representação de universos fantásticos; sonhamos com as imagens de vielas que encontraremos em certas danças da morte. Citemos as que Georges Kastner traz à tona: a viela é associada a um dos quatro esqueletos-músicos presentes no manuscrito 7310 da Biblioteca Nacional da França. A encontramos também nas mãos de uma velha mulher vestindo uma cornette e que toca no meio dos esqueletos-músicos no icones mortis de Holbein. Ela aparece nas diversas representações do instrumento que podemos ver na Danse du grand Bâle, uma dança macabra de mulheres do fim do século XV que está no manuscrito 995 da Biblioteca Nacional de Paris, folio 24. A morte, também carregando uma viela de roda, acompanha Adão e Eva expulsos do paraíso numa placa de chaminé feita por Philippe Soldan em 1573. 

Painel La Chaise de Dieu
Datando da mesma época, também pensamos na dança macabra do painel La Chaise de Dieu, em que vemos um instrumento em formato de alaúde. Há também aquele reproduzido por Wilkins, do século XV ou XVI - aproximadamente da mesma época. E não podemos esquecer do conhecido quadro de Breughel, Le Triomphe de la mort. Citemos por fim aquela obra, que se encontra em Sion, na Suíça, representando o demônio armado de uma viela, provavelmente no momento em que Adão e Eva são expulsos do paraíso.

Le triomphe de la mort - Breughel (viela no canto inferior esquerdo, na carroça)
Falta consideramos se este aspecto perturbador da viela de roda explicaria o estranho comentário feito pelo Duque de Luynes. A rainha, Marie Leszczynska, não tocaria jamais esse instrumento às sextas-feiras, dia de penitência. Ainda que o praticasse nos outros dias da semana. “Apenas às sextas a rainha não toca a viela, mesmo em sua casa. É uma antiga prática de devoção.”



Referências feitas no texto:

ELIADE, Mircea.  Le sacré et le profane, 1957, tr.fr. Paris, Gallimard, 1965.
Kastner, Georges. Les danses des morts, Paris, Brandus, 1852.
Wilkins, Nigel. La musique du diable, Sprinmont en Belgique, Mardaga éditeur, 1999.

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Por favor, saibam que essa tradução foi feita de forma completamente despretensiosa, apenas para vocês terem uma ideia da riqueza de informações que esse livro nos traz. É interessante ver que mesmo lá atrás a viela de roda já era um instrumento estranho e apaixonante. Aliás, também podemos dizer que era um instrumento polêmico, já que dividia opiniões.

Logo volto com mais novidades sobre nosso exótico instrumento em terras brasileiras, ok? 
Muita coisa rolando por aqui. 

Vielisticamente,


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